Arquivo

A vida vive-se, não se referenda

sinais do tempo

A Vida não é eterna e começa num momento preciso, em que após a fecundação do óvulo se dá inicio a divisão celular. Na realidade a nova vida começa a ser sentida pela mãe, quando surgem os primeiros enjoos e o corpo inicia todo um processo de modificação que dura nove meses. A vida tal como eu a entendo não se referenda.

A Cesaltina tinha então 38 anos, mãe de dois filhos quase adultos, adoeceu com uma inflamação do pâncreas. Fez dois RX e uma ecografia. Estava grávida. Levantaram-se questões diversas (radiações, medicamentos, gravidez não desejada) e a equipa médica propôs à Comissão de Ética a interrupção da gestação. Não foi aceite. Depois de tratada a doença, partiu em busca de alguém que lhe resolvesse o problema. Um ano depois encontrei-a com uma criança ao colo, bem nutrida e desenvolta, mas os membros não se tinham desenvolvido. Tinha tentado um aborto mal sucedido, que ainda por cima lhe provocou infecção. Teria sido esta a afectar o desenvolvimento intra uterino? Ou teriam sido os fármacos ou mesmo as radiações? A duvida irá sempre persistir.

A Teodora, então com 40 anos, desejava muito ter o segundo filho, mas estava difícil. Tinha dores na coluna e fez um RX. Entretanto a ausência prolongada de período e uns enjoos, levaram-na a fazer um teste de gravidez. Com grande emoção descobriu que estava grávida. Mas a vida no útero já existia quando fora exposta a radiações. Decidiu que não ia abortar. Foi monitorizado o desenvolvimento morfológico por ecografias 3 D e no final tinha mais uma filha linda e saudável.

A Jesulina, descobriu que estava grávida depois de um “atraso” de 2 meses. Fora o resultado de uma tarde de estudo, pouco (muito) produtiva, com um colega, que nesse dia se tornou namorado por um mês. É verdade que sabia que existia a pílula, o preservativo e até a pílula do dia seguinte. Depois de muita angústia dividiu o problema com uma amiga e depois com a mãe. Engrossou as estatísticas das mulheres que na nossa sociedade têm um segredo bem guardado, porque além de segredo, constitui um crime. Consultou o psiquiatra. Durante algum tempo sentiu-se a pior mulher do mundo.

A Reinalda, sofre de depressão crónica e toma medicamentos. É casada sem filhos, porque ainda não se sente preparada, só de pensar nisso aumenta a angústia. Quando descobriu que estava grávida entrou em pânico. Até porque estava a tomar medicamentos que podiam ser teratogénicos, A decisão foi rápida, deu um salto a Badajoz e resolveu o problema. Não foi segredo, não foi crime.

Poderia contar muitos outros casos de mulheres que abortaram e outras que o não fizeram. Há casos e casos, essa é a realidade.

Com o referendo não se quer saber se concordamos com a interrupção voluntária da gravidez, mas tão só saber se aceitamos que a mulher decida (em consciência ou não) o que fazer com uma vida que transporta no útero.

A interrupção da gravidez já está legislada há muito. Na prática dizer “sim” no referendo determina a suspensão de um estatuto de criminosa e de clandestina ( embora seja público que não se encontra nenhuma mulher detida por ter praticado o aborto). As mulheres que por razões filosóficas ou religiosas não abortam, não vão ser obrigadas a fazê-lo.

Por tudo isto, poderia sentir-me dividido, entre o “sim” e o “não” no referendo, isto porque o que vamos referendar é um absurdo: “Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada por opção da mulher, nas primeiras dez semanas em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?”

Mas a IVG (interrupção voluntária da gravidez), constitui um acto médico, como tal pressupõe um diagnóstico de doença actual ou futuro e consequente intervenção terapêutica. Então o facto da mulher grávida decidir que quer abortar implica doença? Constitui uma indicação para a atitude terapêutica? Penso que não.

Contudo dificilmente a mulher recorrerá a intervenção tão radical, excepto quando não vislumbrar outra saída para uma situação que se lhe afigura insustentável e da qual resultarão por certo graves conflitos internos e portanto doença (com base na definição da OMS para saúde). Não acredito que alguém que transporta dentro de si um ser vivo (constitucionalmente assumido como bem protegido), assuma a sua destruição sem que emocionalmente seja afectada.

Portanto podemos concluir que a legislação actual está adequada, apenas falta dotá-la de meios para a fazer cumprir. Após a aprovação da lei porque não regulamentou e não fez aplicar a lei o Ministério da Saúde? Nos apoiantes do “sim” encontramos médicos obstetras, psiquiatras, psicólogos, que podiam ter criado uma rede de clínicas, onde sob protecção legal praticariam a IVG. Porque não o fizeram? Ou será que o fizeram mas não o declararam? E se não declararam, fizeram-no de forma clandestina, com vantagens económicas óbvias (sem recibos, sem IRS, etc).

Já agora, consultem os Códigos Penais espanhol e português e tentem descobrir as diferenças.

Este referendo constitui acima de tudo um entretenimento politico, uma forma de medir forças, entre os pensamentos mais conservadores e os mais materialistas. Nem sequer se discute se concorda ou não com o aborto, porque isso já é assumido por lei perante determinados condicionalismos e com indicação para o acto médico.

Dizer “sim” no referendo representa dizer que em qualquer circunstância e sem excepções, a vida humana só começa e só deve ser protegida ao 71º dia, até lá é perfeitamente irrelevante.

Não se iludam contudo os que pensam que o sim vai implicar de forma tácita que o Estado vai assumir integralmente a responsabilidade económica deste “tratamento” como assume a pílula, atente-se na pergunta a referendar e percebe-se. Na realidade a IVG não pode ser encarada como uma forma de contracepção.

Dizer “não” está carregado de carga negativa, porque parecem defender algo que já não está em discussão, é regressar ao passado, a teorias que a sociedade de hoje considera obsoletas.

Então agora já nem sequer estou divido entre o “sim” e o “não” porque na minha opinião o referendo não tem razão de existir. Digo “não” ao referendo votando em branco, como muitos outros portugueses e isto não representa abstenção nem indiferença.

Nota: Todos os nomes são fictícios por razões óbvias.

Por: João Santiago Correia

Sobre o autor

Leave a Reply