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A União, o referendo e a democracia

Razão e Região

A propósito do imbróglio político criado pelo resultado do referendo francês sobre o Tratado Constitucional da União, faz sentido reflectir sobre uma questão que é pouco discutida, mas que se vem tornando cada vez mais relevante nas democracias ocidentais. Trata-se da relação entre o referendo e a representação. Ou melhor, da relação entre um instrumento de democracia directa, o referendo, e a componente representativa da democracia moderna.

No essencial, a democracia moderna é uma democracia representativa. Os cidadãos elegem os seus representantes, delegando neles soberania, ou seja, poderes para agirem em nome de todos e sobre todas as matérias de interesse comum. Esta delegação de poderes acontece por vários motivos: por causa da divisão do trabalho, por falta de tempo e por falta de competências específicas sobre uma sociedade cada vez mais complexa, rápida e absorvente. Na democracia representativa, além disso, o mandato não é revogável fora dos prazos estipulados para as eleições. A representação com impossibilidade de revogação do mandato é que caracteriza, no essencial, a democracia representativa.

Como se sabe a democracia representativa foi ao longo da história criticada pelas suas insuficiências, quer pela esquerda revolucionária quer pela direita tradicionalista. Ambas criticavam o formalismo hipócrita que diziam existir nessa construção da razão que era a democracia representativa. A esse formalismo preferiam organicismos de vários tipos, enaltecendo as virtudes da vida real contra as ficções formalistas do racionalismo.

É verdade que a democracia representativa nunca conseguiu resolver alguns problemas de fundo, que subsistem. Problemas que estão detectados. Mas também é verdade que a tentativa de lhes responder através da construção de regimes de democracia directa deu no que deu. A própria democracia representativa procurou responder a esses problemas injectando no seu interior mecanismos de democracia directa. E é este o caso do referendo. Em determinadas matérias, durante a vigência do mandato legislativo, os cidadãos podem pronunciar-se directamente de diversas formas, com carácter consultivo ou vinculativo. Procurou-se, assim, aperfeiçoar os mecanismos de participação e envolvimento político dos cidadãos no processo democrático. O que constituiu um progresso e um reforço da própria democracia representativa.

Mas quando vemos ilustres intelectuais – de direita e de esquerda – vibrarem com o resultado negativo de um referendo como o que acaba de se verificar em França é caso para perguntar se vibram pelo resultado em si ou pelo retumbante regresso da democracia directa e pela proclamada revolta contra as elites políticas.

A verdade é que – em nome do referendo e do que ele representa – já estão a tornar-se quase obsessivos os argumentos contra a «classe política», vindos, afinal, quase sempre, de destacados protagonistas políticos – em funções ou aparentemente fora delas – ou dos costumeiros «aprendizes de feiticeiro». A reforçar este aspecto está a tendência, cada vez mais presente – vista a velocidade com que se está a processar a vida política, muito fruto do ritmo que os media lhe emprestam –, para o desvio de significado dos referendos no sentido de uma avaliação intercalar da acção dos governos, como aconteceu em França. O que constitui uma efectiva distorção funcional do referendo e da própria democracia representativa.

A função referendária não pode sobrepor-se à função representativa. Nem tem, tecnicamente, mais legitimidade do que o voto que delega soberania. Diria mesmo que este voto confere uma legitimidade de maior amplitude que o voto referendário, que é sempre sectorial. E, todavia, Chirac, aceitando o valor político da distorção, acaba de substituir Jean-Pierre Raffarin, o primeiro-ministro francês, por Dominique de Villepin. A razão é que, aqui, as motivações dos eleitores são outras que não as da Constituição da União. Os franceses usaram, de facto, e com sucesso, o referendo de forma distorcida, não se pronunciando sobre a Constituição, mas sim sobre o governo ou o Presidente. Nem de outro modo se compreenderia. Quantos são os franceses que leram a Constituição? Se virmos, por exemplo, a arquitectura político-institucional, o que mudou não pode justificar, de modo nenhum, a votação maciça que se verificou no «não».

Do que eu suspeito é que a euforia com este resultado do referendo francês possa significar mais do que recusa da Constituição. Possa significar um secreto regozijo quer pelo regresso em força da democracia directa quer pela consequente ruptura dos nexos de legitimidade próprios da democracia representativa. Ou não é ruidoso o silêncio sobre as inúmeras ratificações parlamentares já verificadas e sobre o resultado positivo do referendo espanhol? É que aquelas e este não confirmam a máxima dos nostálgicos da revolução: «vale mais uma ruptura do que mil consensos»! Ainda por cima, esta – a francesa – foi uma má notícia. O que também é bom para todos os jornais e telejornais.

Por: João de Almeida Santos

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