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A Paixão de Gallo

Corta!

Finalmente! Depois de variadíssimos adiamentos, a obra maldita de Vincent Gallo, responsável pela obra-prima absoluta que é «Buffalo ‘66», estreou entre nós. Principal (único?) tema de conversa e discussão no último Festival de Cannes (o que até se percebe num festival que começa desesperadamente a perder parte do seu anterior carisma) «Brown Bunny» está agora ao dispor dos portugueses (um dos poucos países a estrear o filme) para que possam avaliar por si próprios se este é realmente o pior filme a ter já passado por tal certame, como Rogert Ebert, reputado crítico americano, chegou a afirmar. Pena que Gallo tenha capitulado perante tanta crítica e decidido fazer desaparecer meia-hora de filme. Das duas horas da versão inicial podemos apenas ver hora e meia. Maldição…

Quem conheça minimamente o universo Gallo sabe já quais as características deste, que se repetem incessantemente, como se através de uma constante repetição de imagens, nomes, ideias ou sentimentos, este pretendesse encontrar uma resposta para qualquer pergunta que há muito deveria ter sido abandonada. Uma rapariga que espera, ou partiu. Um constante abandono banhado em frágeis lágrimas, por entre palavras desconfiadas. Coelhos. Sempre coelhos. Viagens. Tudo com a solidão por companhia. Solidão de quartos de hotel, onde tudo é passageiro, numa urgência em agarrar e manter algo por mais algum tempo para além daquele que a realidade nos concede. É fácil adivinhar em Gallo toda a violência que lhe causa o roubo constante que o tempo faz. Se tal sofrimento se via já no seu filme de estreia, as feridas provocadas por perdas – qual paixão de Cristo, aqui sem direito a ressurreição final – são aqui levadas ao extremo.

Quase um home-movie, «Brown Bunny» poderia na verdade ter sido feito por qualquer um nos dias que correm. Isto pelo menos no que ao nível dos meios utilizados diz respeito. Nuns dois terços do filme não terá havido operador de câmara, com esta a ser posicionada de uma determinada forma e depois é só actuar. Não é complicado imaginar Vincent Gallo – sozinho – a colocar a câmara, ligá-la e passar para a frente desta, actuar e no final desligá-la e partir para o plano seguinte. O facto de muitos dos planos estarem desfocados, ou desfocarem sem que ninguém faça nada para alterar tal (por lá não estar ninguém para isso?), só ajuda para facilitar tal tarefa. É um quase diário, sem filtros, de todos os seus medos e obsessões, o que Gallo nos oferece. É raro ver tanta honestidade no cinema actual. Uma honestidade que aqui só lhe tem a fazer frente o narcisismo de quem, nos seus filmes, opta por tudo fazer. Algum do espírito do cinema de 70 anda por aqui e só para os mais distraídos isso não será motivo de júbilo.

Acompanhando a viagem de Bud Clay, motociclista profissional, encontraremos respostas a perguntas que nem sabíamos existir. Por entre encontros furtivos ao longo do percurso, onde todas as mulheres terem nome de flores não é somente coincidência, chegaremos a Daisy, num inesperado twist final. E depois de ver o filme é difícil perceber o alarido em redor daquilo que aqui acontece entre Chloë Sevigny e Vincent Gallo. Se já é surpreendente descobrir como pode ser motivo de polémica, nos dias de hoje, uma cena de sexo oral, mais surpreendente ainda é falar-se de tal tendo em conta onde tal cena está inserida. Pena de quem aqui apenas veja pornografia.

Se «Buffalo ‘66» era o filme que todos sonhámos um dia conseguir fazer, «Brown Bunny» é o filme que já todos fizemos. A paixão pelas paisagens que nos surgem para logo desaparecer, numa qualquer viagem, naquelas horas mágicas onde tudo nos (a)parece perfeito e que desejávamos para sempre guardar. Freeze! Conservar! Gravar e empacotar, para mais tarde recordar!

Por: Hugo Sousa

cinecorta@hotmail.com

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