Há algo de profundamente reacionário na tese partilhada pelas direções do PSD e CDS de que o atual governo do PS é ilegítimo. Não havendo finalmente como negar o facto da indigitação (ou indicação) de António Costa por Cavaco e o apoio ao seu governo por uma maioria de deputados no Parlamento, eis que Passos e Portas se lançaram numa cruzada contra um governo que acusam de ilegítimo. A tese é tanto mais reacionária quanto vários militantes de renome de ambos os partidos, quando chamados a emitir a sua opinião em público sobre o assunto, se afastam dela como o diabo da cruz e não querem servir como peões desta guerra. E fazem-no porque compreendem que, na formação do governo, não há legitimidade sem legalidade nem legalidade sem legitimidade; ambas as qualidades estão intrinsecamente relacionadas. E isto acontece precisamente porque as regras que determinam a formação do governo derivam da Constituição da República. Esta é a lei magna que organiza a política, pelo que os seus preceitos investem de legalidade e legitimidade as práticas que se conformam com ela. Mais do que isso, é a materialização das múltiplas práticas que a Constituição possibilita como legais que cria a legitimidade política.
No campo da formação do governo, torna-se hoje mais evidente que a legitimidade política pode provir de diferentes conjugações eleitorais mas que, por causa da natureza (ou das regras) do sistema político, é ao Parlamento que cabe a última palavra na aprovação daquele. A legitimidade de um governo provém do Parlamento enquanto emanação da vontade popular livremente expressa, e por isso é que são possíveis – logo, legais – diferentes aritméticas de formação do governo: maioritários, minoritários, de coligação, com acordos de incidência parlamentar ou sem eles. Acresce que, em teoria, o Presidente da República pode ainda decidir propor ao Parlamento um governo de sua iniciativa. Qual é o teste último porém? A votação no Parlamento. É essa votação – que deriva de um sistema proporcional – que permite precisamente tomar em consideração todos os votos expressos e garantir que o governo é a emanação de uma maioria, ao mesmo tempo que atribui um papel às minorias. Por vezes, e essa é uma possibilidade como outra qualquer, a única maioria possível emana da conjugação de minorias. Qualquer força que não atinja metade dos deputados mais um tem de contentar-se em formar um governo de minorias e esperar, ou trabalhar para que o acordo funcione.
A insistência no valor absoluto da vitória eleitoral – no alcançar mais um voto que os adversários, fora do contexto constitucional que dá significado e enquadra esse resultado – é profundamente reacionário no sentido em que reduz a política, a democracia e a governação a uma luta de fações pelo aniquilamento do adversário e procura limitar as possibilidades da negociação e da concertação após a manifestação do voto. A negociação pós-eleitoral entre forças partidárias é tanto mais legítima quanto nela se manifesta a importância relativa dessas forças e, por isso, é a materialização da mais democrática das dinâmicas: aquela que não aniquila as minorias e lhes atribui um papel na governação (não necessariamente no governo). Mas o facto de haver cada vez mais personalidades do PSD e CDS a afastarem-se da tese da ilegitimidade do governo Costa mostra que compreenderam que esta é mero expediente da radicalização da luta política decidida pelas direções dos respetivos partidos. As diatribes furibundas de um Telmo Correio, de um Marco António Costa ou de uma Cecília Meireles servem apenas o propósito de quem parece ter desistido de fazer oposição para se concentrar na pré-campanha eleitoral, convencido de que a campanha propriamente dita não tardará. Só assim ganha significado a atitude de Passos: o chefe da fação contrária pode ter conseguido usurpar o poder mas o verdadeiro Primeiro-Ministro é e voltará a ser ele.
Por: Marcos Farias Ferreira