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A grande incógnita

Nas últimas semanas a actualidade portuguesa – a mudança de governo, o agravamento da crise, o imbróglio da Justiça, a eleição no PS – forçaram-me a escrever sobre assuntos nacionais. Abandonei, portanto, temáticas que tanto me preocupam, por condicionarem fortemente Portugal, quase sempre de forma negativa, tais como: a deriva económica mundial – com a subida sistemática do preço do petróleo e do ouro, no mercado internacional, atirando as expectativas de uma retoma para começos de 2006, na melhor das hipóteses; o agravamento da crise do Médio-Oriente – com a agudização da guerra no Iraque, a instabilidade no Afeganistão, o imbróglio, cada vez mais inextricável, do conflito israelo-palestiniano; a difusão e periculosidade do terrorismo islâmico na Ásia, na Europa e mesmo na África, com os seus campos de treino, semente de novos terroristas, no Iraque e no Afeganistão, mais ameaçadores do que nunca, mesmo em relação a países islâmicos como a Arábia Saudita e o Paquistão; o impasse, diria, patético em que se encontra a União Europeia, paralizada, com o seu tradicional défice democrático a crescer em flecha, dada a manifesta incapacidade dos seus principais dirigentes (todos grandes perdedores das eleições europeias, como Blair, Chirac, Schroeder, Berlusconi e Durão Barroso) para dar sentido ao alargamento e fazer avançar a União no plano institucional; e, finalmente, «last but not least», a incógnita das eleições presidenciais americanas, não só por nelas se escolher o vértice do império, mas por se tratar destas eleições, que estão a dividir profundamente a América e aparentam vir a ser, no entender da maior parte dos observadores, as mais decisivas e disputadas da história dos Estados Unidos.

A falta de credibilidade da democracia americana

A primeira questão que se põe é: as próximas eleições serão limpas, no sentido de sérias, ou virão a ser, como as anteriores, dadas as comprovadas irregularidades ocorridas no Estado da Florida, truncadas e falsificadas? O simples facto de se pôr uma tal questão é muito significativo da quebra de credibilidade a que chegou a democracia americana sob a Administração Bush.

Com efeito, num artigo publicado no «El País», em 21 do corrente mês de Agosto, intitulado «Salvar o voto», o reputado economista americano, Paul Krugman, professor da Universidade de Princeton, escreve: «É horrível pensar que a credibilidade da nossa democracia – uma democracia conseguida graças à coragem e ao sacrifício de muitos homens e mulheres valentes – está agora em perigo. É tão horrível que alguns preferem não pensar nisso. Mas fechar os olhos não fará com que a ameaça desapareça. Pelo contrário, negar a sua existência só servirá para incrementar as possibilidade de termos eleições desastrosamente suspeitas».

A desconfiança introduzida pela Administração Bush quanto à democracia americana não se refere somente ao facto das eleições terem sido – e poderem voltar a ser – falsificadas. A credibilidade da democracia não repousa somente no facto de as eleições serem sérias e, como tal, consideradas por vencedores e vencidos. Tem a ver com a divisão – e independência – dos poderes do Estado, com a observância da Lei, com o respeito pelos Direitos Humanos, pelo Direito Internacional e pela Justiça. Com o civismo e a participação dos cidadãos na coisa pública. O sistema democrático americano, como se sabe, tem vindo a ser apurado através dos chamados «checks and balances», que asseguravam o pluralismo e o equilíbrio dos poderes.

Autêntica inversão de valores

Ora, nos últimos quatro anos de Administração Bush, a tendência inverteu-se, o poder do dinheiro tem vindo a sobrepor-se a tudo. Os políticos dependem dos «media» e os «media» do poder económico, no que pode chamar-se uma autêntica inversão de valores. A confusão entre os altos dirigentes que rodeiam Bush – a começar pelo vice-presidente Dick Cheney, patrão da Halliburton – e as grandes empresas multinacionais, em que têm interesses, tornou-se absoluta, a ponto de alguns críticos universitários americanos pretenderem que a democracia americana tem vindo, progressivamente, a transformar-se numa verdadeira plutocracia, senão mesmo, cleptocracia.

Não estou a exagerar. Trata-se de uma preocupação autêntica partilhada por milhões de pessoas conscientes, americanos e não só. Muitos dos meus leitores viram o filme de Michael Moore, Fahrenheit 9/11, um libelo terrível, um panfleto de grande impacto imagético, que tem impressionado profundamente as pessoas que o viram e está a ser discutido na América e em todo o mundo. Não é grave que seja um panfleto. Seria grave, isso sim, se dissesse ou sugerisse coisas falsas sobre a Administração Bush. Mas não foi isso que aconteceu. Ninguém, até agora, disse que as imagens que surgem no filme de Moore são falsas ou que as gravíssimas acusações que faz o sejam.

O meu amigo Jean Daniel, director do «Nouvel Observateur», que este ano passou uma parte das férias em Portugal, teve a gentileza de me oferecer um DVD intitulado: Le monde selon Bush, filme de William Karel, que tem estado a causar o maior sucesso em França e que deve já estar à venda nas Fnac portuguesas. É de uma virulência terrível, ainda maior talvez do que o filme de Moore. Se os argumentos que os dois filmes adiantam, que são gravíssimos, contra Bush, fossem falsos, há muito que os autores estariam processados e os filmes retirados de circulação.

Mas não. Infelizmente são verdadeiros. Aliás não são só os filmes, são também livros, revistas, jornais, panfletos, a internet, etc., todos excelentemente documentados, cujos autores são personalidades altamente responsáveis e bem conhecidas nos meios americanos. Cito, entre outros livros, (cuja leitura me permito aconselhar) só dois: Richard A. Clark, Against all Enemies. Inside America’s War on Terror (RAC Enterprise, Inc, 2004) que, em espanhol, tem o mesmo título e um subtítulo muito expressivo, As confissões de um responsável do antiterrorismo da Casa Branca (Ed. Taurus); e Robert C. Byrd, Losing America, livro de um senador sénior americano, em exercício, que denuncia a mentira, a corrupção e o Governo em circuito fechado da Administração Bush (ed. W. W. Norton & Company – New York – London). Há muitíssimos mais…

Apesar disso, John Kerry e George W. Bush estão praticamente empatados, não obstante as sondagens mais recentes darem uma pequeníssima vantagem ao primeiro. O terceiro candidato, Ralph Nader, teoricamente um verde, que quer rebentar o duopólio da política americana, tem pouco mais de 2%. Parece irrelevante. Mas há quatro anos foi quem deu a «vitória» a Bush…

Assegurar a derrota de Bush

No entanto, a mobilização dos activistas anti-Bush está a adquirir um dinamismo extraordinário e, embora favoreça Kerry, exerce-se à margem dos aparelhos partidários tradicionais, sobretudo por via da internet e dos espectáculos, como os da parelha David Crosby e Graham Nash, que estão a percorrer toda a América para desacreditar, pelo humor, Bush. É um fenómeno novo e nunca visto, mas que não pode deixar de ter consequências…

Tony Judt, historiador, da Universidade de Nova Iorque e jornalista de nomeada, num artigo publicado na «Newsweek», escreveu estas palavras sábias: «A democracia é o mais delicado dos sistemas políticos. Sem confiança, morre. É um lugar comum dizer hoje que a confiança entre a principal democracia do Planeta e os seus aliados está reduzida a zero. Fora dos Estados Unidos (e de Israel) ninguém – ou quase – tem confiança nos Estados Unidos e no seu Presidente. Antes, os Estados Unidos eram admirados. Temiam-se e invejavam-se. No presente, provocam desconfiança».

Tenhamos esperança de que o bom senso prevaleça e assegure a derrota de Bush. O balanço do seu mandato é, de todos os pontos de vista, trágico. Para a América e para o mundo. Esperemos, pois, que o pesadelo termine a 2 de Novembro.

Por: Mário Soares

Rede Expresso

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