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A Factura Autárquica

Da análise ao estado das contas públicas pela comissão Constâncio resultou um número para o défice, a rondar os sete por cento, e uma mensagem muito clara: há que cortar despesas e aumentar receitas – o que deu ao governo um excelente pretexto para quebrar promessas e tomar algumas medidas de emergência. As primeiras vítimas foram os funcionários públicos, de repente privados de alguns dos privilégios que mantinham perante nós, os contribuintes que lhes asseguram salários e reformas. A seguir veio a classe política, como segunda vítima, a perder privilégios – e a ver desincentivados ao mesmo tempo os candidatos a cargos públicos (porquê a partir de agora a má reputação, a exposição pública, a renúncia a uma carreira profissional mais lucrativa?). Finalmente calhou-nos a todos com o aumento do IVA e do imposto sobre produtos petrolíferos.

O impacto de algumas dessas medidas é imediato e alivia as contas, mesmo que seja desmoralizante para os seus destinatários imediatos e seja previsível que se venham a pagar num abaixamento da qualidade dos serviços públicos e da própria classe política, assim como da competitividade das empresas.

Acontece é que os esforços do governo podem ver-se torpedeados pelas autarquias, ansiosas em ano de eleições por mostrar trabalho e angariar votos. As empresas municipais vão começar a contratar pessoal, a endividar-se, a fazer tudo aquilo que está vedado às câmaras e a aumentar, por via indirecta, a despesa e o défice.

Uma reportagem do suplemento dominical de “O Público” sobre Marco de Canavezes oferecia uma visão aterradora do que são algumas (muitas) das nossas autarquias e também do que é a cegueira de muitos eleitores. Os do Marco têm vindo a reconduzir sucessivamente um presidente de Câmara que os deixa falidos, sem algumas das infra-estruturas mais básicas, com um elevado índice de abandono escolar, altos níveis de desemprego e uma paisagem urbana degradada e feia. Isto sem falar na falta de perspectivas de futuro, um evidente défice democrático e o desperdício de milhões em obras sem sentido nem utilidade. Esta reportagem, mostrando um caso extremo, dá também uma ideia do que tem sido em Portugal gerir uma autarquia.

Treme-se só de pensar o que implicaria transferir algumas responsabilidades, e correspondentes meios financeiros, para as Câmaras. Imagine-se o que seria se passassem elas a dispor de armas como por exemplo a contratação e colocação de professores e médicos, ou liberdade para contrair mais empréstimos ou cobrar mais impostos.

É assim que os esforços do governo para acertar contas à custa dos funcionários públicos, dos políticos, de todos nós, podem vir a revelar-se inúteis. A não ser que haja a coragem, em ano de eleições, de afrontar também as autarquias e os autarcas.

Por: António Ferreira

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