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A capeia não é a solução para tudo

Opinião

O mês de agosto é diferente na Raia sabugalense, aliás como na maior parte das regiões marcadas pela emigração. No entanto, na Raia há um sortilégio diferente que é acrescentado pela vivência de uma tradição única no mundo. De facto, a Capeia Arraiana faz com que, pelo menos por um mês, se voltem a ver as aldeias cheias de gente, num peregrinar de capeia em capeia.

A candidatura e posterior classificação da Capeia como Património Cultural Imaterial Nacional, num tempo em que se ouvem muitas vozes contra manifestações tauromáquicas, foi o reconhecimento do caráter único de cultura popular, uma manifestação da identidade arraiana, esculpida ao longo de séculos.

Os tempos são outros, relativamente ao tempo em que as festas, em geral, e as capeias, em particular, eram momentos realmente únicos. A miséria e o esquecimento a que foi votada a região, pelo anterior regime, fizeram com que muitos tivessem que partir à procura de outras oportunidades que aqui não existiam. Foi a grande sangria da emigração da segunda metade do século passado. Mais tarde, com o ‘desaparecimento’ da fronteira e a falta de medidas adequadas à sustentabilidade do território, foi a migração para as grandes cidades e, mais recentemente, na região como em todo o País, novamente para o estrangeiro.

Face aos fatores enunciados não custa entender as dificuldades por que passa o concelho do Sabugal, no que se refere ao despovoamento crescente. Para referir só três exemplos, no início do século passado Aldeia Velha tinha mais de 1.000 habitantes, os Forcalhos quase 500 e Quadrazais quase 2.000.

O êxodo a que se assistiu levou mesmo a que o calendário das festas fosse ajustado, em muitas localidades, ao mês agosto. Muita coisa mudou, como atrás referimos, em Portugal e na Raia, nos últimos 40 anos. Deram indicações para que se abandonasse a agricultura e as pescas, investiu-se nas grandes cidades do litoral, criando um plano inclinado que levou as pessoas a abandonar as suas terras de origem. Nesta perspetiva, o concelho do Sabugal, a manter-se a tendência das últimas décadas, estaria condenado a extinguir-se, como território povoado, em quatro ou cinco décadas. Certamente não será assim.

O que ficou depois de tudo isto? Nem tudo se perdeu, embora algumas coisas vão mudando. Certamente que a vivência, que distinguia as gentes da Raia, das peripécias do contrabando, essa terminou. Mudaram usos e costumes, mas há um que se mantém vivo e até em recuperação face ao que se passava há algum tempo atrás: a capeia arraiana. Em menos de um mês são mais de 20 os festejos envolvendo a tradição.

É diferente a capeia de hoje da de há 50 anos? É, porque mudaram as circunstâncias. Felizmente há melhores estradas, há mais divulgação, há mais possibilidades económicas… e aquilo que era um acontecimento local ganhou uma nova dimensão. São cada vez mais os forasteiros que visitam a região raiana e são também melhores as condições para receber as multidões que a visitam para assistir e participar no ambiente da capeia. São também mais organizados os eventos. Longe vai o tempo em que vinham os touros de Espanha, “desviados” ou cedidos pelos espanhóis. Longe também quando as praças eram todas improvisadas, com os carros de bois, que eram utilizados, carregados com lenha e rama de carvalho e se corriam menos bois, com menos homens ao forcão, mas também com animais de menor porte, havendo mesmo terras onde não esperavam o “boi grande”.

Tanta coisa mudou, mas uma mantém-se igual: o espírito da capeia. Aquela irmandade de pegar ao forcão, de esperar ansiosamente pela chegada dos bois do encerro, do ritmo sincopado do forcão, da adrenalina e da boca seca quando se está cara a cara com o touro, da esperança de ouvir o seu nome quando são nomeados os mordomos da capeia, do passeio, do pedido da praça, da conversa, da partilha… No fundo, da manutenção da ALMA ARRAIANA que continua viva em Lisboa, em Paris, ou noutra qualquer parte do mundo.

É esse espírito que a capeia representa e não deve perder. Foi esse espírito e a informalidade de uma manifestação cultural que emanou do Povo que não deve adulterar-se. A capeia arraiana é do Povo e deve continuar a ser e foi essa singularidade que o Instituto dos Museus e do Património reconheceu. Vamos deixar como está que está bem.

Finalmente, deve dizer-se que esse espírito, um pouco guerreiro, de fronteira, deve servir para encontrar soluções para devolver ao Sabugal e à Raia uma nova vida. É que os tempos da capeia podem dar-nos a falsa sensação de que é assim o ano inteiro. A capeia não é a solução para tudo.

Por: António Pereira de Andrade Pissarra

* co-autor do livro “Terras do Forcão”

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