«A fé é que nos salva. É ela que nos ajuda a cumprir mais este sacrifício». São as palavras que encorajam os peregrinos de várias localidades do concelho da Covilhã a palmilharem, ano após ano, os longos e sinuosos caminhos que levam a Fátima. A tradição voltou a repetir-se entre 7 e 10 de Maio para um grupo de quase 180 pessoas que todos os anos se aliam a uma organização que é aclamada por todos como «exemplar e excelente».
A maior parte dos caminhantes encontra-se há mais de cinco anos, altura em que o mentor principal, Manuel Paulo, natural dos Vales do Rio, se afastou de um grupo que tinha ajudado a fundar para criar outra estrutura capaz de levar mais peregrinos a Fátima, como lhe foi pedido pela mãe. «Ela ajudava as pessoas há muitos anos, mesmo sem conhecerem caminho nem carreiro iam com fé, e quando ela ficou doente pediu-me que, até poder, os apoiasse sempre», recorda Manuel Paulo, congratulando-se com os grupos que tem reunido e, sobretudo, com as pessoas que mais o têm ajudado. São elas Gabriela Serra, do Teixoso, Filipe Ricardo e Filipe Valezim, do Paúl, e Bernardino, dos Vales do Rio. «Só com a boa relação que temos entre nós se consegue um grupo destes, capaz de respeito e com vontade de ajudar», reforça o responsável, destacando as horas de trabalho, a exigência e a paciência que uma organização deste tipo exige para que nada falte, sobretudo a quem vai a pé.
Cumprir uma promessa não é o único motivo que leva as pessoas a irem a pé a Fátima. Na hora de formar o grupo «não nos interessa o que vão fazer, apenas que sejam leais, cumpram as regras da organização, sejam pacientes e ajudem os que vão pior». Manuel Paulo, que nunca foi movido por qualquer promessa, frisa que o lema desta estrutura é que as pessoas que vão bem ajudem quem está pior e se respeitem mutuamente para que todos cheguem ao Santuário. O desejo voltou a concretizar-se este ano. Dos 138 caminheiros que arrancaram na madrugada do dia 7, apenas dois não chegaram ao destino, um por doença, outro porque partiu o pé ao ajudar um companheiro. O responsável máximo garante que não desistem mais pessoas porque a fé e a vontade de chegar o mais rapidamente possível «vai aumentado a cada passo dado». Isto, para além do apoio incansável dos guias, dos mais resistentes e de alguns enfermeiros que, além de peregrinos, ajudam a minimizar as mazelas físicas e psicológicas, «gratuitamente e com boa vontade».
Embora não façam o caminho a pé, os restantes membros do grupo exercem a sua fé de outras formas, uns ajudam a alimentar os parceiros de viagem (35 pessoas dedicam-se à “cozinha”), outros acompanham-no com carro próprio dando água ou prestando outros cuidados (cerca de seis elementos). «Começámos a vir uns 30/40 agora já vamos nos 180 e não trazemos mais porque não podemos. Queremos dar um apoio digno a todos para que não tenham nada a dizer, já que as pessoas trabalham muito, com alma, para que nada falte», explica Gabriela Serra, organizadora do grupo do Teixoso e da Covilhã, que, também sem promessa, colabora há 16 anos com Manuel Paulo. E nada falta mesmo, como demonstra Alberto Rodrigues, peregrino do Paúl que este ano foi pela primeira vez a pé e promete voltar: «Nunca pensei que isto fosse tão humanitário e divertido. A organização é excelente, gostei muito e quero repetir», promete.
Mas este ano houve mesmo um peregrino diferente. Carlos Pinto, deputado na Assembleia da República e autarca da Covilhã com mandato suspenso, queria ir a Fátima a pé há muito, mas só agora conseguiu. Foi sem promessa, mas vestiu a camisola de peregrino «não só pelo afecto que tenho por Nossa Senhora de Fátima», mas também porque «sempre me comoveu muito o sentimento que se vive na Cova da Iria». Católico, Carlos Pinto acredita sobretudo na prática da fé e naquilo que é a crença de cada um nos seus próprios valores e nos valores divinos. «É essa a minha prática de cristianismo», remata. Sempre disposto a chegar ao final da etapa, apesar de todas as mazelas sentidas e vividas, o actual deputado considerou-se no final um homem realizado: «Vir a Fátima a pé é um momento único na vida de qualquer pessoa que acredita na existência de uma dimensão espiritual», desabafou, garantindo que há-de voltar.
Diário
Dia 1 – Silvares foi o ponto de encontro dos três grupos – Covilhã e Teixoso, Paul e Vales do Rio – às 08h00. Depois do pequeno-almoço (café, leite e sandes diversas), confeccionado na hora, como todas as refeições, formou-se um só grupo e começou ali o primeiro dia da peregrinação. A vontade e a força anímica ainda estavam frescas, mas o sol começava a cansar os mais fracos. O arroz de frango esperou-os perto de Janeiro de Baixo, onde se montou o “acampamento” para a segunda refeição. As panelas são muitas e grandes e o medo de errar estava bem patente no rosto da cozinheira, que, com 81 anos, ainda sente coragem para «fazer esta obra de caridade a esta gente». Mesmo depois de sete anos de experiência, Teresa Cipriano diz que ainda hoje pede a Deus para que faça «como nas bodas de Canã e que nada falte». «Ele está sempre comigo, porque até hoje só tenho quem diga estar a comer num hotel de cinco estrelas». Além de cansativo, “Ti’Teresa”, como é tratada, tem um posto de «muita responsabilidade», mas garante que enquanto tiver forças irá porque mesmo sendo um «sacrifício muito grande, sinto-me muito bem graças a Nossa Senhora». Recompostas as energias, o grupo volta à estrada disposto a terminar os 46 quilómetros que o levam até à Ponte de Cambas, local do jantar e da primeira pernoita. Há um salão de restaurante disponibilizado para descansarem e curarem as mazelas do primeiro dia.
Dia 2 – Às 03h00, Manuel Paulo encarrega-se de acordar a comitiva. Está na hora de esticar o corpo, desmontar a tenda e começar mais um dia. Sobe-se a Serra de Cambas com a ajuda do luar e dos faróis dos carros. Ao cimo do monte bebe-se um leite achocolatado e comem-se umas bolachas para aguentar até ao pequeno-almoço. O calor aperta por entre as matas queimadas de Oleiros, mas ainda faltam muitos quilómetros para completar os 42 do dia. A feijoada começa a cheirar na zona de Cruz do Fundão. Aproveita-se para tratar as primeiras flictenas dos pés, para massajar as pernas mais cansadas e tratar outros problemas. Frederico Esteves, além de peregrino no apoio, esteve sempre a postos como enfermeiro e ajudou os que inspiravam mais cuidados. Além de aconselhar os peregrinos a usarem meias de algodão, calçado confortável e usado, roupa leve e fresca e um chapéu na cabeça, sugere que devem dirigir-se a profissionais de saúde antes das grandes caminhadas e alertar sempre a organização para os eventuais problemas «para não serem apanhados de surpresa, sobretudo quem vai a pão e água». Sente-se orgulhoso por ter ajudado tanta gente e diz mesmo que chegou a sentir-se melhor do que no seu local de trabalho. «Com ou sem fé, quem vai a Fátima ganha em humanismo e em saber ajudar os outros», garante. A pernoita é feita no Maxial da Estrada, onde uma associação local disponibiliza as suas instalações para a dormida dos peregrinos.
Dia 3 – O dia começa à mesma hora. Sertã e Cernache do Bonjardim ocupam grande parte da madrugada e manhã. Os rituais repetem-se, mas neste dia o cansaço é visível nos rostos cada vez mais ansiosos por chegar. Maria de Lurdes Abrantes, 55 anos, foi pela segunda vez a pé com promessa e confessa que, mesmo com muitos problemas numa perna, tem fé e há-de «lá chegar». Há quem comece a pensar desistir, mas a inter-ajuda é enorme e ninguém tem coragem para parar. No final do bacalhau comido em Dornes, Carlos Pinto sentia-se verdadeiramente cansado. «É um sacrifício físico incomensurável», dizia, garantindo que com esta experiência ficou a perceber aquilo que «poderemos fazer se tivermos um objectivo determinado e aquilo que o nosso corpo é capaz de dar». Mas também conheceu melhor alguns quadros de exigência física e de sacrifício que foi vendo ao longo da vida. «Hoje fico mais capaz de compreender essas condições», sintetiza, preparando-se para mais uns quilómetros em direcção a Areias, onde o grupo pernoitou.
Dia 4 – O esforço é muito grande, mas a vontade de não desistir é superior neste último dia. Como é habitual, a chuva deu um ar da sua graça e refrescou as passadas cansadas dos peregrinos ansiosos por chegar à Cova da Iria. Depois da massa com carne em Vila Nova de Ourém, surge um misto de sentimentos indefiníveis. «É uma coisa magnífica e apelo a todos para que possam viver esta experiência. É das coisas melhores que podemos encontrar na vida, é um objectivo», desabafava Arménio Matias, presidente da Junta de Vale Formoso, que foi pela primeira vez a pé. Já faltavam poucos quilómetros para o destino e cada um queria chegar primeiro que o outro. As forças redobram-se então para alcançar o cimo da última etapa, da qual se avista a torre da basílica. Esquecem-se as dores, os cansaços, as tristezas e reina a alegria e o choro emocionado por se ter cumprido mais um objectivo. Aí vestem-se as “t-shirt’s”, preparadas pela organização, e orienta-se a procissão em direcção ao Santuário, a rezar e a cantar canções de Maria. No final, Carlos Pinto sintetiza os quatros dias: «A principal dificuldade é termos a força de irmos dizendo, passo-a-passo, que vamos chegar ao fim e chegarmos mesmo».
Por: Rita Lopes