As casas ainda dormem sob uma luz a querer crescer. As paredes brancas mitigam as dores da noite. Dos telhados escorre um choro mansinho. Os olhos de cada janela têm dificuldade em distinguir os sons que se agigantam. Quem dera dois violinos e um piano. Sempre tiveste mãos orgânicas sobre as teclas. A cidade amanhece e um brilho dourado prende-se ao teu cabelo.
O dia é uma estrada. Procuras um lugar como quem apenas quer um abraço. Sabes que podes tocar nas árvores. Já as pessoas achar-se-ão distantes. Se as vires não te abeires. Trazem com elas a iminência do risco e os olhos inchados dos sonos perdidos.
Há uma claraboia a girar sobre a tua cabeça. Os teus pés são carris que fogem. A boca ainda sabe ao excesso de fumo. A cidade não permite ver o céu e os gradeamentos das varandas desenham sombras no alcatrão.
Desces do teu abrigo e segues até ao rio. Um frio inesperado arrefece-te os ossos. Grafitas o ontem e, livre das tintas que te tingiram, inclinas a cabeça. As mãos ao longo do corpo. Há um rosto que desconheço a arremessar o peso dos dias. Sei bem como sonhas com o mar onde as medusas são lençóis de silêncios que te acolhem.
As pessoas não. Deves evitar as pessoas. Ouve as sinetas a anunciar a sua presença. As instruções são claras – terão a cara coberta e não deverão beijar ou abraçar. Jamais tocar em objectos de uso comum como corrimões de escada. Uma maldição divina – as pessoas.
Bocas gritam de longe – a lua ainda está sobre a tua casa – e descrevem com minúcia que o céu tem tons rosados. Percebes como as sombras podem ficar atrás. E inventas outras formas de não estares só. Olhas as mãos e nas suas linhas descobres países por colonizar. São terras virgens que tudo permitem. Ouve-se ao longe a musicalidade de valsas livres. É então que decides acolher pessoas de olhar dorido e braços cansados. Ordenas ao capitão que siga viagem.
Aclaras a visão quando os barcos se afastam do porto. Ficas tu com o horizonte. Sempre te pertenceu. Saberás agora o que fazer com ele. Encontrarás forma de incendiar as cores desbotadas do arco-íris. Os sons são de um branco vivo e numa placa da estrada escreve-se quase sempre a palavra exodus.
* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia