Por mero acaso de arrumação, ao lado de uma colectânea de ensaios e contos de G. K. Chesterton, jaz na minha secretária uma lata que tem escrito “elimina insetos voadores” (e talvez por consequência, consoantes mudas). Como “The Guardian” e “The New York Review of Books” já se debruçaram suficientemente sobre o escritor católico inglês, julgo que terá muito mais interesse para o leitor dar alguma atenção à lata de insecticida de uso doméstico, a tal que mata melgas e consoantes. Num pensamento lateral, parece-me que este Verão há menos melgas no tecto e mais na televisão.
A lata apresenta-se em versão trilingue (português, inglês e francês), sendo que, nos idiomas estrangeiros, “inseticida” sem C passa a “insecticide” com C. No frontispício, acrescem umas pernas de insecto e a indicação “sem odores desagradáveis”. Estaremos, provavelmente, perante um insecticida com aroma de água de colónia.
Ao rodar a lata para ler as indicações, leio com espanto e deleite uma descrição psicológica, feita num estilo literário recortado em frases curtas e muito devedor a Samuel Beckett, do primeiro-ministro em reuniões do Infarmed, com “Aerossol extremamente inflamável. Recipiente sob pressão. Risco de explosão sob acção do calor. Muito tóxico.”
Resisti inicialmente a esta interpretação, numa atitude negacionista como a de quem recusa acreditar que a Bíblia é a prova real de que a vida na Terra é, na verdade, uma experiência laboratorial de extra-terrestres. No entanto, tal como a revelação bíblica se encontra no livro do Apocalipse, é também no fim da lata de insecticida, no quadro da composição química, que se percebe com toda a certeza que se trata verdadeiramente de uma descrição do Governo português: “Substâncias inertes: 98,997%”.
* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia