Comemorou-se esta semana o fim da II Guerra Mundial, o mais brutal e abominável facto histórico que a Humanidade já conheceu. Caracterizada por uma barbárie e selvajaria sem precedentes, foi o culminar de um período de absoluta decadência moral, social e económica que deverá para sempre recordar-nos que o homem é, afinal, o seu pior inimigo. Só depois, na lista de horrores possíveis, vêm todos os outros nossos fantasmas. Isto é tanto mais importante quanto nos encontramos mergulhados numa pandemia que mudará para sempre as nossas vidas. Foi, por isso, esta guerra comemorada com a simplicidade possível em tempo de confinamentos.
A memória de mais de 60 milhões de mortos e de uma destruição incalculável deveria ajudar-nos a compreender como somos vulneráveis e tudo pode ser efêmero. As causas próximas do horror do holocausto, dos bombardeamentos de toda a ordem, da dizimação de etnias, credos e religiões, da destruição física de tanto de belo que até aí havíamos produzido, todos as conhecemos hoje com detalhe. Mas, pelos vistos, aprendemos muito pouco com elas…
A II Guerra Mundial ensinou-nos que só com união e solidariedade poderíamos sobreviver. Na Europa assistiu-se ao Plano Marshall, o qual ajudou a enterrar, pelo menos transitoriamente, ódios e conflitos de interesses de séculos. Depois, surgiu, pelas mãos de Robert Schuman, ministro francês dos Negócios Estrangeiros, e Jean Monnet, o seu primeiro presidente, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, a primeira organização supranacional no âmbito europeu, a qual mais tarde evoluiria para a Comunidade Económica Europeia e a União Europeia.
Os europeus passaram a ter esperança porque assistiram, num ambiente de cada vez maior prosperidade, à ascensão de uma democracia política europeia com direitos sociais. Ora, são precisamente estes dois elementos, prosperidade e direitos sociais, que atualmente começam a falhar estrepidosamente e a ser reduzidos a mínimos historicamente perigosos. A reação já a conhecemos historicamente bem: a disseminação de ideais que gostaríamos de nunca mais termos de combater.
O Brexit, imediatamente antes da eclosão da atual pandemia, e a ascensão eleitoral aparentemente imparável de todo o tipo de movimentos racistas e xenófobos não auguram nada de bom. A pandemia só veio colocar mais stress neste já de si pouco animador cenário. A caraterística mais assombrosa de toda esta recente evolução será aquilo a que poderemos chamar “verdades à la carte”, tendo do outro lado da moeda as “fake news”. Em vez de se lidar com a mensagem, tenta matar-se o mensageiro, sem quaisquer escrúpulos ou dúvidas aparentes. O expoente máximo dessa evolução são indivíduos como Trump ou Bolsonaro, que, tal como Hitler, foram democraticamente eleitos.
Este falhanço aparente das democracias, muitas delas lideradas por pessoas com uma estupidez e ignorância que julgávamos impossível de algum dia poder subsistir, começa com a culpa e diabolização de quem denuncia falhas graves ao nível do funcionamento dos sistemas políticos e administrativos, os quais se desejariam mais atuantes, transparentes, solidários e participativos. Isso é um erro histórico que se paga sempre caro. Criticar-se quem aponta o dedo a compadrios e à ascensão de uma casta dinástica e oligárquica que tudo controla e manipula é suicídio. Aqueles que agem na defesa dos seus exclusivos interesses, ignorando o desespero coletivo contra maleitas como o desemprego, a miséria e a cada vez maior desigualdade social, não têm qualquer visão do futuro que não seja a sua. Transformaram as democracias em democraturas. A chegada de mais um fator de stress, como é o caso da pandemia, só vai agravar o problema. Nesse contexto, ou a Europa se reinventa ou morre. E, se e quando isso acontecer, todos saberemos como vamos ter saudades dos tempos que ainda vivemos. O que diz tudo sobre aquilo que nunca poderá ser descrito e debatido apenas com palavras…