Encontro dois brinquedos nas minhas recordações mais remotas: o Preto, um boneco com os olhos pintados de verde, e o Jorge, um boneco impossível de tirar do seu banho de espuma de borracha. Nenhum tinha cabelo ou roupa de verdade e ainda tive de esperar até ter direito à minha “Bella” com cabelo, vestido, casaco, carteira e brincos. Era tão bonitinha e direitinha que a escolhi para melhor amiga. Enquanto falava com ela, inconscientemente, ia-a abanando para que os seus olhos fossem pestanejando os desejados assentimentos. Afinal de contas, esta era a única forma de a fazer comunicar comigo. Hoje, penso que, de alguma maneira, toda a nossa história acaba por se resumir à permanente busca de olhares mecânicos que nos apoiem sem ressalvas de razoabilidade. Não fora assim, seríamos imunes ao algoritmo das redes sociais que tão eficientemente nos adivinha as necessidades de aquiescência e nos arranja sempre quem concorde com a mais irracional das nossas convicções. Alimentando esta nossa predisposição para confundirmos sítios de entretenimento com os de notícias e aceitarmos como válido o que não tem qualquer valor.
Numa altura em que o dente que já dói fica por tratar, o relógio jaz sem pilha, o roupeiro se desatualiza e a amizade esfria com o café que não se pode ir tomar com os amigos, a importância dos media tradicionais emerge ainda com mais premência. Em qualquer dos seus formatos, os jornais são os únicos que dão notícias. Não podemos por isso esquecer que os outros, que não são jornais, não passam de sítios de credibilidade tão duvidosa como os olhos da boneca que eu abanava só para que concordasse com o que eu achava. Quando muito, poderão dar novidades, que não servem para nada mais do que distrair e entreter, fazendo da coscuvilhice o seu modo de vida. O que nos pode levar a concluir que não há notícias falsas, apenas origens falsas, ou falsificadas, das mesmas e que só a necessidade de legitimar as nossas conceções alternativas as alimenta. Com o nosso mundo cada vez mais confinado a um ecrã, ainda que sem limites, impõe-se a razoabilidade na sua utilização. Competência que só a escola, a quem cabe a tarefa de educar, e os meios de comunicação tradicionais, a quem cabe a função de informar, conseguirão que se alcance. Sendo mais ou menos consensual que, para o bem e menos bem, depois desta pandemia nada voltará a ser como dantes, talvez seja oportuno lembrar o “não há mal que bem não traga” dos nossos vizinhos espanhóis e fazer da literacia digital o “bem” que deste mal temos de saber extrair. O “bem” capaz de acabar com a “terra plana” dos que não acreditam nas evidências, de acabar com os “estudos” que negam os benefícios das vacinas, de acabar com as “rezas” como cura de todas as doenças e calamidades. Até porque a terra é mesmo esférica, as vacinas são a única maneira de evitar certas doenças e rezar nunca curou ninguém. Realidades incontestáveis que escola e jornais, ainda que digitalmente, têm de saber continuar a ensinar e difundir.