Do que me lembro, um dos rapazinhos da ilha, ao dar de caras com uma cabeça de porco coberta de moscas e espetada num pau, terá achado que, se aquilo era um tipo de oferenda ou homenagem a um pretenso deus, este só poderia ser o das moscas: “O Deus das Moscas” (Lord of the Flies). Obviamente que a história de um deus assim nunca poderia acabar bem e muito pior teria sido caso, em boa hora, não tivesse surgido quem resgatasse as crianças sobreviventes da guerra própria a que guerras alheias as tinham abandonado. Atrevo-me até a pensar que, não fora o facto de o enredo excluir gente adulta dos acontecimentos relatados e o estar muito bem escrita, a história nada teria de inédito ou extraordinário. Era só mais uma como milhares de outras em que o mal se sobrepõe ao bem apenas para que um punhado de gente estúpida se entretenha a afirmar-se perante os demais. Com as características dos visados em tais exercícios de poder, não valerá a pena perder tempo e carateres, porque já todos as conhecerão, julgo.
As tangerinas (Mandariinid), ou melhor, apanhá-las, era para o que agora viviam os dois vizinhos que, como que imunes à guerra que os cercava, se preocupavam mais com tal tarefa do que com as balas, de todo o tipo e feitio, que lhes rasavam a casa. Mal eles sabiam que a guerra que não alimentavam, não queriam e tentavam ignorar, maior empreitada lhes haveria de arranjar. Entre a renitência deste e a voluntariedade daquele, um mais que o outro, acabaram ambos por assumir a recuperação de dois soldados, inimigos entre si, que se lhes tombaram nos braços. Esta última tarefa, de tão urgente e difícil, acaba por lhes trocar as prioridades, pois o tempo que deveriam dedicar à apanha das tangerinas passou a ser gasto a evitar que os dois feridos morressem ou se matassem entre si. Com uma dedicação destas a história só podia acabar bem e melhor acabaria se, em má hora, não tivesse chegado quem assassinasse o dono das tangerinas e o jovem soldado que, antes de o ser, escolhera ser artista de teatro. À semelhança da anterior, esta história também nada teria de inédito ou excecional, não fosse o caso de estar muito bem contada, ou filmada, se preferirem.
Significará isto que, mesmo que não haja nada de novo para contar, porque tudo parece reduzir-se à tensão entre o bem e o mal, há sempre diferentes maneiras de contar melhor velhas histórias? Talvez. Tal como decidir se acabam a favor de um lado ou do outro, preferir um vencedor a outro, talvez já só seja da incumbência de cada um, ainda que cada narrador pretenda sempre levar-nos a preferir um dos lados em relação ao outro. Certo, certo penso ser a nossa responsabilidade na escolha do lado por que nos deixamos seduzir, por que nos disporíamos lutar. Essa será exclusivamente nossa. A menos que evitemos ler, ver filmes e teatro. Nesse caso, já não precisaremos de nos incomodar em responsabilizarmo-nos pelo desfecho dessas histórias, ou pela forma como no-las pretendem contar. Aliás, um “tanto se me dá” nem nunca pagou imposto, nem nada.