Quando o nosso mundo fica demasiado exposto às palavras existe um coração que palpita por algo mais. “Sobe a Maré Negra” é um livro que extravasa para a vida como as lágrimas que o oceano derramou num corpo que nunca ficou pronto para as rugas. Francesca Stubbs, apesar de se sentir atraída pela morte heroica desde uma idade precoce, é a personagem que recorda a rapariga que sangrava para enganar essa pele que insiste em envelhecer. Porém, a sua existência começa a fazer parte de um mapa cheio de perdas e, se por um lado há quem pense que as emoções encolhem à medida que envelhecemos, por outro Fran parece estar em fuga perpétua, rejeita a inércia a que a velhice condena porque, tal como a sua amiga Josephine Drummond, quer morrer com luz. É preciso referir que a personagem central é divorciada, com dois filhos adultos e, embora já tenha ultrapassado a idade da reforma, continua a trabalhar e quer guiar o carro até o último momento.
Desde o princípio que percebemos que Fran é uma mulher de certezas firmes, mas o tempo derruba muitas dessas seguranças. Primeiro, compreendemos que a Inglaterra não tem chão para tanta chuva; depois o televisor mostra imagens da recente erupção oceânica ao largo de El Hierro; e mais tarde há a “Nuvem Vermelha” de Piet Mondrian e a poesia de Yves Bonnefoy que reconhece a finitude do homem através das ruínas e das suas memórias. Sabemos que a morte está próxima, e numa avalanche de inquietações, existe um farol que nos situa para essa maré (nem sempre negra): Sara escapou a ser velha, mas antes disso falou com Ghalia Namarome sobre o Muro da Vergonha; Cristopher (filho de Fran) perdeu a sua companheira Sara, mas está seduzido pelas Canárias; Poppet (filha de Fran) vive obcecada com a morte do planeta, mas recorda os tempos de meninice; Teresa Quinn está a morrer de mesotelioma, mas morre com tal empenho que Fran se sente fascinada. Todos os dias correspondem a céus diferentes e se existem nuvens que murcham a existência também há eufórbias que nos fazem erguer a cabeça e contemplar os mais simples prazeres da vida.
Mais do que um livro sobre a morte, Margaret Drabble escreve sobre a espera e um coração que pode falhar a qualquer momento. A velhice está em toda a parte e o Brexit também. Parte do livro passa-se na ilha de Lanzarote, mas a autora faz lembrar um Reino (des)unido e isolado como nenhuma outra ilha, por isso existe uma meia-luz que nos permite avançar e uma meia-sombra que nos faz duvidar. Envelhecer parece sempre ser um desastre e existem perguntas que nunca chegam a ser respondidas: «Nenhum deles pode saber até que ponto da história dos imigrantes está longe de acabar; na verdade, está apenas no princípio. Ao longo dos anos seguintes, serão menos os que arriscam a passagem do Norte de África para o Atlântico, mas serão multidões os que povoam, em barcos mal preparados, o Mediterrâneo Oriental à medida que a violência no Médio Oriente e na Líbia os empurra para um maior desespero. Apontarão para a Grécia, Malta, Sicília, Itália e milhares e milhares afogar-se-ão enquanto a Europa se fortifica, deixa de enviar missões de salvamento, deixa afundar-se os barcos à vista de terra. Quanto mais gente se afogar, espera a Europa, mais se desencorajará a emigração e menos serão as bocas para a Europa alimentar». O mundo tem erguido muitos muros e as suas memórias traumáticas não dissipam com o tempo. Mais do que certezas, este é um livro sobre ruínas, mas é preciso seguir a luz.
Melanie Alves*
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
**Pode visitar: www.aosomdapele.wordpress.com