É noite. Numa majestosa vivenda em plena Washington Square, Olivia de Havilland, acompanhada de uma vitoriosa lamparina, sobe triunfalmente a escadaria que dá acesso aos seus aposentos. Sinistra, ela finge ignorar os gritos de um desesperado Montgomery Clift, que bate à porta do palacete. Bastava esta cena de fortíssimo impacto visual para colocar “The Heiress” (1949), adaptação da peça teatral homónima de Augustus e Ruth Goetz (que, por sua vez, foi baseada na novela “Washington Square”, de Henry James), no reino dos clássicos absolutos do cinema. Acontece que este sumptuoso melodrama, dirigido por um dos meus realizadores favoritos, William Wyler, impõe-se como uma obra-prima do início até ao seu apoteótico final. É, provavelmente, o meu filme favorito e, sem espaço para dúvidas, o meu dramalhão de eleição. Intenso, adulto, acutilante e gostosamente amargo, “The Heiress” é um daqueles filmes que esboça uma crítica inteligente à sociedade rica e puritana, obcecada pelas aparências. É também um estudo de personalidade e uma história de amor, de ódio e rancor. A história, por si só poderosa, é deliciosamente bem contada através de diálogos brilhantes e fica ainda melhor ao ser acompanhada por uma sensível fotografia e uma cuidada, tétrica e austera banda sonora (vencedora de Óscar).
Outro aspeto a realçar são as argutas interpretações dos atores, tão bem dirigidos por Wyler. Clift, estrela em ascensão, consegue imprimir a ambiguidade indispensável à sua personagem de caça-fortunas; Miriam Hopkins encarna a mais simpática, e tola, das personagens num “glamour” muito próprio dos melodramas de época; mas os melhores louros vão para Ralph Richardson e, como não podia deixar de ser, para de Havilland.
Conseguindo o seu segundo Óscar de Melhor Atriz, a eterna Melanie de “Gone with the Wind” protagoniza um dos desempenhos femininos mais memoráveis do cinema, mostrando com convicção como uma doce e ingénua criatura se transforma numa mulher podrida pela amargura e o desencanto (devo dizer, no entanto, que me custa aceitar que a atriz, com a sua beleza doce e singela, encarne uma jovem supostamente pouco bonita). Nunca num filme, nem mesmo em “Psycho”, uma casa, os seus compartimentos, as suas escadarias, tiveram tal energia háptica, convertendo-se também num autêntico personagem (Óscar de Melhor Direção de Arte completamente merecido).
Apesar de cultuado, da sua qualidade cinematográfica inegável e dos Óscares conquistados (não esquecer que Edith Head conseguiu, aqui, a primeira das suas oito estatuetas de Melhor Guarda-Roupa), “The Heiress” não ocupa a “nata pop” onde habitam outros filmes como “Casablanca” ou “Pulp Fiction”, amplamente conhecidos e citados. Injusto e bizarro.
Quando, em novembro de 2014 assisti, sem saber muito bem o que esperar, a este fabuloso melodrama fiquei estupefacto e obcecado. Desde aí, cultivo o meu deslumbramento por “The Heiress” e pelo talento de de Havilland.
Miguel Moreira