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Fructidor

1. Nos tempos livres, passo em revista os murais das campanhas dos diversos concorrentes à autarquia guardense. O assunto interessa-me enquanto fenómeno comunicacional. E desse ponto de vista, são mais os pontos comuns do que as diferenças. No essencial, superintende um guião geral. Centrado na celebração encomiástica das acções de campanha, resumidas a festas e sessões informais de ‘auscultação’ dos anseios populares. Os respectivos cabeças de lista aparecem rodeados de ‘gente simples’, que certamente ‘escutam’ com simpatia e depois enchem de esperança. Os candidatos mostram-se envergando casual wear, vendo-se algumas camisas aos quadradinhos e, no limite, coletes. As t-shirt de campanha são amplamente usadas. As senhoras, que acompanham a comitiva e a acção missionária, como se costuma dizer, ficam sempre bem na fotografia. São notórios os beberetes informais, alguns tractores e muita pose. Porém, para lá das semelhanças, ressaltam as diferenças. Pois que, pondo de parte o PCP e BE, temos duas narrativas para três candidaturas: a da continuidade festiva e a da alternância envergonhada. Amaro, de pedra e cal, inscreve a obra feita ao lado das grandes realizações da humanidade. E anuncia que muito mais irá sair da cartola. É esta a mensagem retirada da página respectiva. Por sua vez, os challengers subdividem-se entre o entusiasmo artificial dos socialistas, e o entusiasmo naïf do CDS. Vendo as fotos de campanha, adivinha-se o aumento de colesterol dos oficiantes, por via dos enchidos e carne assada e taxas de álcool apreciáveis. É o que dá a hospitalidade serrana e a vaidade pastoreando o bom povo. Ambas as campanhas competem no deserto de ideias, na falta de visão periférica e na pusilanimidade. Recentemente, em conversa com um amigo publicitário, dizia este que as pessoas mais facilmente aderem a ideias originais, a projectos iconoclastas, do que ao carrossel de lugares comuns em que se transformou a política local. Pelos vistos, tal argumento ainda não chegou à Guarda. É pena. De resto, fascina-me a coreografia do poder. Nada tão solene e ridículo como a linguagem autopromocional das campanhas eleitorais. De tal forma que, do ponto de vista comunicacional, não há diferença entre a propaganda de uma obscura lista concorrente a uma autarquia e o boletim oficial do partido comunista da Coreia do Norte. A não ser talvez os penteados e a presença de uniformes sorridentes. Os candidatos, apesar de semi deuses omniscientes, são mostrados a escutar as vozes populares. As ‘pessoas’, como eles dizem. E os candidatos emergem, na sua glória, rodeados de um coro de vozes autênticas, rudes, infantilizadas. Uma encenação barata, desactualizada e que já ninguém, para além dos próprios, leva a sério.

2. Lisboa está atulhada de turistas. Claro que a débil economia nacional agradece. Os negócios florescem. E o resto que se sabe. Mas interessa mais ao fundo. Lisboa é de novo o berço para muitas e desvairadas gentes. Não o umbigo do mundo e o sumidouro da nação, como nos idos de quinhentos. Não o ralo de um país falhado, retratado em tons expressionistas por Eça em “A Capital”. Não! É o turismo de massas no seu esplendor. Multidões de zombies vagueando. Mortos pelo cansaço de querer ver tudo e não ter tempo para ver nada. Ou enlatados nos tuk tuk. Ou debruçados nos autocarros panorâmicos. Ou numa fila gigantesca para qualquer coisa: um pastel de Belém, ou as bilheteiras automáticas do metro. A vocação cosmopolita da capital já fez germinar as flores mais preciosas: a troca de saberes, de artes, de produtos, de ambições. Resumida agora ao ócio programado. Onde o requinte, a curiosidade e a vertigem de outras épocas descambou na adrenalina mole, na cegueira e numa espécie de escravatura hedonística.

3. Walter Benjamim desprezava aqueles que não eram capazes de tomar partido. À primeira vista, o mundo em queda que conheceu e o fez soçobrar explica uma exigência tão radical. Talvez, mas não chega. O seu desabafo tem menos a ver com as circunstâncias históricas do que com a natureza humana. Tomar posição é uma espécie de condenação por se ser livre. Um espinho que nos confronta e projecta para a decifração da realidade. Sobre isto, gostaria de dizer algo mais. Tomar ou não tomar posição é, em si mesmo, irrelevante. O que importa é a posição em que nos colocamos quando abandonamos o limbo e aquela que outros se colocam perante nós, se forem eles a fazê-lo. E esse juízo de valor chama-se respeito. Ou seja, tendencialmente, respeito mais quem toma posição, concorde ou discorde dela, do que quem anda pelos pingos da chuva, fingindo não andar por ali, de modo a conseguir tomar posição sem ninguém dar por isso. Esta distinção é importante. Pois exclui da equação os casos daqueles que, por razões só suas, se colocaram fora da possibilidade de exprimir as suas posições publicamente. Mas nem por isso abdicaram delas. Bem pelo contrário. Neles, posições são convicções: Não secretas, mas privadas. E nunca fogem delas, ou por causa delas.

4. Gosto de uma boa teoria que explique a realidade até a fazer ceder. Gosto de um discurso que desmonte a ilusão até ela ficar irreconhecível. Gosto dos sonhos que a reconstruam até não se parecer com coisa nenhuma. Gosto dos actores que se fazem temidos. Dos poetas que magoam, mas incapazes de abdicar. Gosto de mulheres que falam muito. Mas também gosto das que falam pouco. Com as primeiras, não é difícil parecer ouvinte dedicado. Com as segundas, é mais fácil contar uma boa história com duas ou três frases de belo efeito. Também gosto de mulheres que dizem muito e falam pouco. E mais ainda das que dizem tudo de todas as maneiras. E um pouco mais daquelas a quem a inteligência permite voar. Mas as que prefiro, de longe, são as que me deixam sem palavras.

Por: António Godinho Gil

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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