A “girl next door” dos anos 50 fez este mês 92 anos. Hoje, Doris Day vive meia reclusa, na Califórnia, cuidando de vários animais. Mas ontem (e para sempre), ela era e será a diva loira e alegre do cinema. No seu auge de estrela (anos 50/60) foi uma das mais queridas pelo público. Musicais, como o meu adorado “Calamity Jane” (1953), e comédias como “Pillow Talk” (1959), são, ainda hoje, amados. É quase certo que o facto de Doris ter feito essencialmente filmes ligeiros marcou-a como atriz de talento limitado. Isto é uma mentira. Eu não exagero quando digo que ela está quase ao nível de Barbara Stanwyck ou de Ingrid Bergman. Para já, não sou da opinião de que fazer papéis cómicos é mais fácil e menos prestigiante que desempenhar papéis dramáticos. Depois, se a questão é essa, então peço que se veja “Love Me or Leave Me” (1955) ou “The Man Who Knew Too Much” (1956) para se ver o talento dramático da atriz.
Doris é das estrelas mais complexas de Hollywood. Antes de mais, ela é uma das poucas loiras do cinema que não é um “sex-symbol”, mas, sim, o seu contrário. Acontece que ela também não é simplesmente angelical como as suas colegas “next door” dos anos 50. Doris é inocentemente “sexy” com as suas personagens nas comédias sofisticadas que fez com o seu amigo Rock Hudson.
Doris é ainda um ícone lésbico. É fácil de entender o que digo se se tiver em atenção o seu já muito comentado papel andrógino no musical “Calamity Jane”, onde ela estabelece uma relação intensa com uma mulher e canta a ambígua e bela “Secret Love”. Penso que as suas comédias com Hudson (um homossexual na vida real que, em “Pillow Talk”, faz de mulherengo a passar por gay) também podem servir de justificação. Em alguns destes filmes Doris é mostrada como mulher independente, que se dedica ao trabalho e que “não liga” a homens e à vida doméstica. Eu não estou a dizer que uma lésbica não gosta de se vestir de um modo convencionalmente feminino e dedica-se mais ao trabalho que ao foro pessoal. O que digo, e o que julgo já ter sido dito, é que a imagem geral de “fora da norma patriarcal” que Doris projeta como mulher independente e desinteressada pelo glamour exigido pelo homem pode causar ressonância com a cultura lésbica que, infelizmente, o mundo patriarcal procurou reprimir.
Teorias à parte, Doris, na sua essência de estrela fabricada, é a vizinha doce e simpática. Como disse Groucho Marx, «eu conheci a Doris Day antes de ela ser virgem». É isso mesmo. Doris Day, a eterna namoradinha da América.
Miguel Moreira*
* Licenciado em Ciências da Comunicação e mestre em Cinema pela Universidade da Beira Interior. Autor do blogue “Ziegfeld Boy”