Zeca Afonso cantou um dia, em tempos conturbados e de grande exaltação, que “Os eunucos devoram-se a si mesmos/Não mudam de uniforme, são venais/E quando os mais são feitos em torresmos/Defendem os tiranos contra os pais”.
Vem isto a propósito da contratação da ex-ministra das finanças de Passos Coelho para administradora não executiva do grupo Arrow Global, o tal que tem em Portugal clientes como o Banif, o Millennium BCP ou o Montepio. Na verdade, Passos Coelho, reagindo à polémica assim causada, perguntou na sua habitual linguagem de adolescente antissocial se os portugueses queriam que os políticos se transformassem em eunucos…
Num país com imensos exemplos de ex-governantes acomodados em empresas ligadas aos universos que tutelaram durante o exercício das suas funções públicas, o curioso é assistir-se à indignação do ex-primeiro-ministro para com a indignação dos cidadãos. De facto a tradição é uma coisa terrível. Sobretudo quando os políticos se têm transformado em paxás e não em eunucos como quer fazer crer Passos Coelho.
Perante a proposta de submeter o assunto a uma subcomissão de ética do Parlamento fiquei sem perceber se Passos Coelho considera os respetivos deputados como eunucos, paxás, ou outra coisa qualquer. É que muitos desses deputados ainda não arranjaram um tacho como o de Maria Luís Albuquerque, a tal que Passos Coelho não quer que seja um eunuco e que por isso só pode mesmo ser um paxá.
Na dúvida, sabendo nós que devido ao facto de o regime jurídico das incompatibilidades ter uma malha tão cheia de buracos, alçapões e saídas de emergência que é mais fácil a um santo ir para o inferno do que um deputado ser sancionado pela tal subcomissão, perdi-me na reflexão sobre as razões para a utilização da palavra eunuco pelo nosso ex-primeiro ministro.
Como decerto sabem, um eunuco obtém-se – ou obtinha-se – pela castração de um homem viril. Era um processo doloroso e com elevadíssimas taxas de mortalidade. Os eunucos eram por isso um bem raro e valioso e podiam ascender aos mais altos cargos da nação, o que contradiz o desprestígio que Passos Coelho quis atribuir-lhes.
Claro que o preço a pagar pelos sobreviventes era a morte da sua virilidade. E quando alguma coisa morre, é sempre uma pena. Nestas confabulações detive-me a pensar – ainda acerca de Maria Luís Albuquerque – no que é que teria morrido para Passos Coelho pensar que a queriam transformar num eunuco. Cada vez mais confuso, coloquei a hipótese algo ingénua e esperançosa de que, num rebate de consciência, Passos Coelho pudesse estar a querer referir-se à morte da ética e dos princípios republicanos em todo este processo. Mas não. Eunuco por eunuco, Passos Coelho o que quer mesmo é que os eunucos sejam os cidadãos e não a casta dos políticos. Sobretudo os políticos do partido dele…
No meio desta barafunda, tendo em conta a muita “porrada” que os portugueses enfardaram nos últimos anos, às mãos do governo de Passos Coelho, dei comigo a suspeitar que alguma dela nos tenha atingido as partes baixas. E, se assim foi ninguém me garante que os portugueses não sejam de facto uns eunucos. Isto é, se calhar somos mesmo aquilo em que Passos Coelho não queria que Maria Luís Albuquerque se transformasse. Seja lá isso o que for.
Pensando bem, há de facto dias em que me sinto mais morto do que vivo.
Mas esta morte, a da ética e da capacidade para aturar tudo isto, é uma coisa realmente tramada. E não é por ser irrevogável, ao contrário de certas coisas do tempo do governo de Passos Coelho. Como dizia Millôr Fernandes, o pior nem é morrer. É não poder espantar as moscas. Ai podem ter a certeza que é…
Por: Jorge Noutel