Os “valores europeus”, e por muito imperfeita que seja esta expressão, estão hoje a ser desafiados. Mas, não no sentido de serem valores postos em causa por uma ameaça que vem de fora, mas no sentido de serem valores cuja reactivação é hoje fortemente exigível entre quem os partilha. Depois dos atentados da última sexta-feira 13 na Cidade Luz, a Europa confronta-se de novo com a necessidade de afirmar uma resposta diferente da do puro conflito, ainda que algum conflito possa ter de ocorrer. Mas com sentido.
Nos séculos XVII e XVIII, construiu-se, demorada e sofridamente, uma ideia de convivência plural entre convicções religiosas irredutíveis a que se convencionou chamar, de forma um pouco infeliz, “tolerância religiosa”, ou apenas “tolerância”. A expressão é infeliz porque deu azo a que os seus críticos a interpretassem como mera concessão de um sujeito mais forte, que tolera o outro apenas na medida da sua superiordade. Contudo, longe disso, os criadores da tolerância religiosa nunca a pensaram nesses termos, mas como aceitação recíproca por parte de todas as confissões da constituição de um espaço de convivência, sem que um centro mais tolerante do que tolerado fosse definido. Foi com base nesta ideia política, por que tanto se bateu Voltaire, entre muitos outros, que se superou as guerras religiosas que devastaram por longuíssimas décadas a Europa.
Esta tolerância – não do mais forte para com o mais fraco, mas recíproca entre todos – foi o dispositivo político que salvou a Europa uma vez. E que salvará a Europa uma segunda vez se esta não perder o norte, deixando-se toldar pelos identitarismos e pelo ódio que tão facilmente deles se seguem.
Com efeito, o inimigo que o Estado Islâmico hoje representa não é o Islão nem sequer a religião, mas tão-só um integrismo, como tantos outros que já sucederam na História. Se uns fizeram da nação o seu integrismo, outros usam a religião para os mesmos propósitos. O Estado Islâmico é um integrismo desta segunda espécie e que logo a seguir, como bem explicam os manuais, teve de eleger um inimigo externo para se garantir o poder internamente. Se se comporta medievalmente e intolerantemente não é por razões fundamentalmente islâmicas, mas porque recusa a modernidade e os seus valores de tolerância, a que associa o seu inimigo externo: o Ocidente.
Portanto, o que nos cumpre fazer não é prescindir da tolerância e regressar às guerras religiosas, ou às guerras entre mundividências diferentes, mas justamente o contrário: não prescindir da tolerância e batalhar, mesmo que em sentido literal, para que sejam asseguradas as condições da convivialidade plural. É pois político e não de outra qualquer ordem o motivo da incompatibilidade com o Estado brutal que se faz passar por islâmico.
Mas, há uma segunda fonte deste fundamentalismo ofensivo e que tendo os seus apoios no Estado Islâmico, ou em organizações terroristas como a Al-Quaeda, não pode deixar de ser associada ao ressentimento da exclusão e da desigualdade social crescentes na Europa. Quase todos os operacionais dos atentados terroristas em França são cidadãos franceses, nascidos e criados em solo francês, mas com vidas que não encontram oportunidades de sentido, acabando por reencontrar-se da pior maneira no sentido do fundamentalismo e da violência.
Por isso, à reafirmação, mesmo que em luta, dos valores da convivialidade plural, herdeiros da tradição de tolerância, a Europa tem de saber não desistir de um projecto para si mesma de sociedade mais inclusiva, sem guetos sociais. Depois dos atentados de Paris, só ficou mais claro como a Europa deve fazer do acolhimento dos refugiados a demonstração da sua razão de ser.
Por: André Barata
* Filósofo e professor universitário. Escreve semanalmente.