Uma das coisas que me torna o acordar mais fácil nestes dias obstinadamente cinzentões e chuvosos é a perspetiva de um belo café quentinho fumegante e aromático num dos cafés da minha rua.
Sentar-me no Staminé, abrir o jornal do dia ainda quente das rotativas e fresco de notícias e sem nada pedir, receber na mesa um aperto de mão, um sonoro bom dia e um café cremoso com um aromazinho que me entra pelas ventas e me inebria os sentidos quase me faz esquecer da humidade lá fora que se me cola à pele e me arrepanha os cabelos.
Esses dez minutos de puro prazer são também um vórtice agregador de aprendizagem empírica em segunda mão, isto é, aprendo com as experiências dos outros que nesse lapso de tempo coabitam comigo naqueles 50 metros quadrados recheados de conversas isentas de manhosice porque os recém-acordados cérebros ditam palavras não meditadas.
Ouve-se portanto de tudo, fica-se por dentro de tudo, da vida que corre na rua, da melhor inclinação dos telhados nesta zona, do preço cárneo do cachaço e do acém nos talhos da praça e não raramente desabafos confessados em voz alta de recentes atropelos sofridos pela maldade de algum vizinho mais obtuso!
Enfim, ouve-se, observa-se o fácies do relator, analisam-se-lhe os gestos e as expressões e extraem-se conclusões… aprende-se empiricamente!
Hoje, um homem mal amanhado de roupa e barba hirsuta dizia para o do lado… Aquele sovina filho da puta teve o descaramento de me entregar a motosserra de depósito vazio!
Arrebitei as orelhas na tentativa de saber com que vizinhos conto. Olhei os dois e vi o ouvinte fazer sinal ao queixoso em direção à porta… Deduzi de imediato que quem chegava era o “sovina”, que pelos vistos tinha ouvido a conversa quando este disse… Então queria-la cheia, era? O primeiro ouvinte, o que fez o sinal ao outro que se calasse disse… Então, pá, era o mínimo que podias fazer, não? O recém-chegado arregalou os olhos, mirou os dois e disse apenas… Falta aí informação, eu entreguei a esse traste, de depósito vazio a MINHA MOTOSSERRA que lhe emprestei porque ele queria botar abaixo um carvalho.
É assim a comunicação, contextualizada e correta diz tudo, descontextualizada e propositadamente obtusa transforma verdades em mentiras e caridade em avareza.
Devemos escolher as palavras sem enganos, são como o café. De qualidade e na quantidade certa animam-nos o dia, demais ou com ingredientes adicionados além do açúcar, deixam-nos a boca amarga e levam-nos a atitudes erradas.
Levantei-me, dobrei o jornal antes de o colocar no costumeiro sítio e li ainda em letras garrafais o título da página… “Esposa mata marido mas fica em pena suspensa porque ele já andava morto por outra”.
Que bem me sabe o café sempre igual! Gosto tanto de ter a certeza sobre o sabor das coisas!
Por: Júlio Salvador