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Os santos e os demónios da política

Ente o ser e o dever ser há – e provavelmente sempre houve – uma enorme distância. As coisas não deviam ser como são. Por exemplo, o desemprego é uma chaga obsessiva que destrói seres humanos e os condena à condição de párias. O medo de perder o emprego ou a casa não devia existir. Nem qualquer injustiça é admissível.

Eu penso que – salvo alguns sevandijas – todos concordamos com isto. Porém, na política específica portuguesa, como não há solução para o dever ser, para o mundo perfeito ou o menos imperfeito possível, ataca-se o adversário como sendo, precisamente, o sevandija. Para o clube da esquerda, a direita quer destruir todos os bons valores e substitui-los por normas perversas; a direita está-se nas tintas para os pobres, para os desempregados, para os desfavorecidos. Para o clube da direita, a esquerda quer preservar umas benesses que foi conquistando ao longo dos tempos (desde logo na aprovação da Constituição) e por isso não tem a mínima preocupação com o país, é hipócrita quando fala de desemprego ou de desfavorecidos e não faz nada, nem nada permite para que se altere a situação.

Deste debate resulta uma espécie de salgalhada perante a qual ninguém se entende. É extraordinário (para mim, pelo menos) como tanta gente (a mesma) reage mal às críticas ao Tribunal Constitucional (um órgão de soberania respeitável), mas acha bem que se chame nomes ao Presidente da República (que além de ser uma pessoa é também, caso não saibam, um órgão de soberania). Mas a democracia é mesmo isto: poder criticar-se e poder discordar e poder dizer que devia ser de outra forma, de outro modo. O problema não está em haver críticas, nem tanto no tom em que essas críticas são feitas (embora a moderação não faça mal a ninguém). O problema, quanto a mim, está no exclusivismo que cada parte coloca na sua tese, como se qualquer outra via fosse impossível, maléfica, ilegal ou desumana. Como se a impossibilidade do convívio com a outra metade do país fosse evidente. Como se não tivéssemos de partilhar o território, a história, o futuro.

Embora pessoalmente não concorde com a visão do TC sobre os despedimentos na Função Pública, sobretudo por achar essa visão estratosfericamente diferente do que se passa no dia-a-dia das empresas privadas, acredito que os juízes tenham agido de boa-fé. Mas tenho de dizer que a crítica que se faz a Passos por ele criticar o TC raramente se vê feita aos líderes partidários que atacam e ridicularizam o Presidente. Quando em causa está o Presidente, os ministros ou os deputados, raramente ou nunca os que agora se indignam com as críticas ao TC tomam as dores dos outros órgãos de soberania.

A democracia é o regime de divergência pacífica entre órgãos de soberania com poderes e visões naturalmente diferentes. Assumamos que é normal haver acusações e críticas. Mas, por favor, não acreditemos que todos os santos estão de um lado e todos os demónios do outro. Porque é isso – e não a crítica livre à Constituição, ao Presidente, ao Parlamento ou aos juízes do TC – que conduz os países à intolerância, ao radicalismo e ao totalitarismo.

Por: Henrique Monteiro

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