1. A obra de Albert Cossery (1913-2008) é pouco extensa. Apologista do ócio, do desfrutar da vida no que ela tem de mais prazenteiro, foi paulatinamente construindo uma obra que prima pela total coerência. Li todos os seus livros e em nenhum senti um momento de enfado. Nota-se, prestando-se atenção, que não há frase ou parágrafo supérfluo. Apesar de se ter instalado num quarto em Paris em 1945 e de ter estado 35 anos sem regressar ao Egipto, todas as histórias dos seus livros desenrolam-se nos bairros pobres do Cairo. Os seus personagens são “os homens esquecidos de Deus”: mendigos, prostitutas, chulos, saltimbancos, ladrões (“-Escuta pequeno…Se somos pobres é porque Deus nos esqueceu, meu filho. – Deus! -, exclamou a criança. E quando se lembrará ele de nós, meu pai? – Quando Deus esquece alguém, é para sempre”.). Entre estes personagens que, esquecidos de Deus, se recusam a dar um passo para mudar a sua condição, há sempre um que é uma espécie de sábio. Aquele cuja filosofia procura sempre chamar à razão todos os que, fascinados pelo que o progresso pode oferecer, esquecem a liberdade de se não trabalhar, de não ter preocupações, de não ter responsabilidades. Quando Cossery diz que gostava que as pessoas depois de o lerem não fossem trabalhar no dia seguinte, fá-lo com toda a legitimidade, uma vez que é essa a questão que qualquer pessoa se coloca ao lê-lo. A sua filosofia é de tal maneira cativante e exposta de forma tão óbvia que não conseguimos evitar perguntar-nos para quê, porquê viver a vida da maneira que a vivemos. A arma que utiliza é sempre a mesma, o sarcasmo. Em qualquer livro seu não há instante em que ele não esteja presente. Em Portugal, as suas obras foram editadas pela Antígona, entre 1999 e 2002, incluindo uma entrevista ao autor.
2. “A verdade é como um todo e não a soma de uma parte”. Tentem descortinar o autor destas extraordinário paradoxo matemático e, quiçá, filosófico. Vou dando pistas. Não é um sofista ateniense. Também não é de Zenão. Já agora, não foi retirado de um suplemento com enigmas e problemas para resolver, enquanto o autocarro e o comboio chega e não. E está muito longe de constituir uma citação do senhor de La Palisse. Nem muito menos uma declaração off topic de George W Bush. Ou até mesmo, no limite, de Cavaco Silva. Pronto, vamos acabar com o suspense. Chega de intróitos. A frase é de… Jorge Jesus! E foi proferida há poucos dias, durante uma conferência de imprensa. Quando a ouvi, percebi imediatamente porque é que o Benfica irá perder este campeonato. Quando há dois meses tudo apontaria o contrário. A frase é todo um programa. Tem o impacto de uma caricatura e o poder evocativo de uma máxima. Mas para bom entendedor…
3. Reflictamos agora (cada vez mais adoro pôr o c) acerca do mais recente anúncio da marca Super Bock, que já toda a gente viu na TV. Reparem nos intervenientes finais. ou seja, os trabalhadores das obras subterrâneas, ou do metro, não se sabe bem. Uns rapazes com ar trendy, indisfarçavelmente urbano e ligeiramente másculos. Embora aparentando uma telegenia de telenovela, do tipo, “desculpem lá a barba, somos os maiores, peixeiras e gays de todo o país, regurgitem diante da nossa presença, ganhamos a vidinha com isto para esquecer que somos actores medíocres e insuportavelmente narcísicos”. Estão ambos de cerveja na mão, numa pausa do trabalho e, olhando para cima, através do gradeamento, vêm não um anjo anunciando a revelação do último mistério de Fátima, mas as cuecas (e sabe-se lá mais o quê!) da réplica de uma Marilyn, cujo vestido amarelo foi levantado pelo ar, muito a propósito soprado através das condutas do metro. Reparem como estes cromos nunca poderiam estar a beber uma Super Bock, naquele local e àquela hora! Quando muito, poderiam estar a escorropichar um penalty traçadinho ou um tintol do garrafão, enquanto ouviam o Quim Barreiros, umas anedotas brejeiras em cassete, ou uma estrela qualquer do panorama pimba ucraniano. Um erro de casting, portanto…
Por: António Godinho Gil
* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia