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Reflexões sobre política e comunicação

Razão e Região

É um assunto que está na ordem do dia. Sobretudo quando se pensa na televisão ou na rede e se verifica que estamos a viver sob um permanente dilúvio de palavras e de imagens. Quando um comentador consegue pôr um grande partido quase à beira de uma crise de nervos. Quando a política se faz cada vez mais à força de golpes e contra-golpes informativos sobre questões vitais para os países. Por exemplo, a questão do iminente resgate financeiro a Espanha, logo desmentido, como rumor falso, pela União Europeia. Quando os media estão transformados em imensos megafones que põem sistematicamente em público aquilo que deveria permanecer privado. Por exemplo, o exercício tenebroso da publicação regular de escutas, nessa gigantesca confusão de géneros representada pela promiscuidade entre justiça e media, continua a fazer as delícias do nacional «voyeurismo», ao mesmo tempo que faz subir as vendas e as audiências. Quando grupos de media combatem, numa guerra sem quartel, outros grupos de media: a Impresa e a Ongoing (sua acionista) em guerra aberta através de artigos sobre a vida de cada uma. Vale a pena, a propósito, ler um recente e demolidor artigo de Nicolau Santos, no «Expresso», sobre a história da «Ongoing». Resultado: processo judicial e pedido de indemnização de dezenas de milhões de euros. E se isto é assim com estes grupos económicos «irmãos», como não será com o poder político sempre que este tome alguma iniciativa que os prejudique? Das campanhas negras, em período de eleições, já se viu e se disse muito. Em período fora de eleições, basta estar com atenção aos ataques concentrados ao anterior Primeiro-Ministro. Mas não é só cá. Se formos revisitar as campanhas presidenciais americanas desde os anos ’50 será difícil não encontrarmos em todas elas um lado «negro». Fora das campanhas, o chamado «spinning», a informação «com efeito», continua a fazer o seu trabalho em grande escala. Lembro a famosa aterragem de George Bush no porta-aviões «Lincoln», em Maio de 2003, para receber soldados regressados do Iraque, já com Saddam em fuga. O homem aparece como «top gun», fardado como soldado de elite a sair de um avião militar Viking, daqueles que aterram ajudados por um cabo de aço fixo no porta-aviões. Foi de avião militar (para poder aparecer como militar de elite no activo, vencedor numa guerra que ameaçava a civilização ocidental), mas poderia, ao contrário do que foi dito, ter ido, de fato e gravata, no helicóptero presidencial. «Mission accomplished», podia-se ler numa enorme faixa colocada na torre de comando do porta-aviões. Bush preparava, assim, a campanha do ano seguinte contra o ultra-medalhado Kerry. A cena correu mundo. E já aparece na Wikipedia como ilustração da entrada «Photo-Op» (Photo opportunity). E do Bush «Top gun» foram feitos milhares de bonecos de 30cm vendidos a cerca de 40 dólares. Por detrás de tudo isto esteve o mais famoso «spin doctor» mundial, Karl Rove, de quem se diz que foi ele quem «inventou» George W. Bush. Lembram-se do film «Wag the dog», de 1997, do realizador Barry Levinson, com Robert de Niro (o «Spin doctor») e Dustin Hoffman (o realizador)? A trama consistia em resolver um gravíssimo problema (de cariz sexual) do Presidente USA (ao tempo, o Presidente era Clinton) que o poderia levar à derrota nas eleições presidenciais que iriam ocorrer poucos dias depois. O «Spin Doctor» produz então uma encenação de guerra com a Albânia, usando todos os recursos de que o realizador de cinema dispunha e o sistema mediático, para onde canalizou imagens de estúdio pré-fabricadas, histórias e «informações» pilotadas de modo a dar veracidade à encenação junto da opinião pública, criando a ideia de uma guerra em curso a propósito de uma ameaça nuclear. A guerra virtual acabou por decisão do Presidente, contra a opinião do realizador que acabou por se considerar (e justamente) o dono da guerra (virtual, em exibição nos telejornais americanos. O realizador acabaria assassinado por razões de Estado e o Presidente reeleito. Este filme (mas também o caso Bush/Lincoln) é exemplar naquilo que importa para compreender o funcionamento da comunicação em tempos de triunfo do audiovisual e das indústrias culturais. A informação transformou-se em comunicação e esta em narrativa/ficção, onde o que domina é a intensidade narrativa e não a veracidade ou a falsidade dos elementos que a integram e compõem. O audiovisual torna esta operação, de fuga à dicotomia verdadeiro-falso, possível. A força de uma «estória» sobreleva a dicotomia verdadeiro-falso.

Tudo isto para dizer o quê? Para dizer que o complexo informativo que paira sobre os cidadãos, onde a maioria, ocupada com o seu dia-a-dia, lutando pela sobrevivência no meio de tantas dificuldades, com tempo tão-só para ver umas imagens à noite no telejornal, é hoje de uma complexidade inimaginável, só comparável ao seu próprio poder, lá onde se cruzam interesses, idiossincrasias, estratégias de curto ou de longo alcance, manobras de ocultação ou de desvelamento de factos, guerras de bastidores, lutas pelo poder, lutas desesperadas pelas audiências e pela publicidade. Um gigantesco submundo que se esconde por detrás do fluir mais ou menos repetitivo dos géneros noticiosos e da notícias, do sorriso ou da gravidade do rosto do pivot que encontra o cidadão sempre à mesma hora e em ambiente familiar. Em boa verdade, entre o magma televisivo profundo e a notícia que nos chega existe um fosso tão grande que o cidadão médio não consegue ultrapassar. A não ser que seja muito informado, com outras e diversificadas fontes, de tipo analítico e crítico. E com capacidade de, na rede, procurar o que na maior parte das vezes já lá está. Ou seja, a abundância informativa, e sobretudo sob a forma como está a ser processada pelos media, de forma não analítica e «com efeito», está a criar um tal de véu de ignorância no cidadão médio que acaba por neutralizar realmente aquela que é a sua função central: a incontornável função de cidadania.

Por: João de Almeida Santos

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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