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Começar

Já não temos começos, diz George Steiner ouvindo os vários sons do fim que formam hoje a voz mais alta da nossa cultura. Há um ar saturado de cansaços, esgotamentos, abolições e estertores. Tudo é tarde. Mas, entre tantos ocasos, decadências, decomposições, desistências e derrotas, o tempo persiste e o Novo Ano começa. O seu começo é como a grande capitular que agiganta o J inicial desta crónica, tornando-o uma sombra que a ilumina. Numa hora em que o desespero diz à esperança para recuar, negando-lhe o rosto e parando-lhe o passo, a memória e a observação ensinam-nos que, a seguir a um crepúsculo que anoitece, vem um crepúsculo que amanhece.

Sabemos que estamos num fim e, por isso, procuramos tanto os começos: do universo, da vida, da mente, da cultura, da história, da sociedade, da linguagem. Esta consciência do fim não é nova, embora a sua forma e o seu favor o sejam. Muitas das grandes obras do Ocidente fizeram do fim a água de Narciso onde reflectem a sua face de exaustão ou de êxtase. Das tragédias gregas (“Este é o fim onde esta acção acaba”, Medeia, Eurípedes) a Shakespeare (“O tempo tornou-me um minucioso relógio/ e minutos são todos os meus pensamentos”, Ricardo II), de Kafka (“A esperança é abundante, mas não é para nós”) a Eliot (“No meu princípio está o meu fim. Sucessivamente/ Casas elevam-se e caem”), o fim como destino, escolha, ameaça, sentença, prenúncio, medo, esperança ou experiência esteve sempre presente no seu clímax queimado. Mas essa presença nunca anulou o grande prestígio do começo. Platão afirma que a origem é a nobreza maior de tudo o que é natural e humano. E, na Bíblia, do primeiro ao último livro, tudo é começo. A sua primeira palavra, a do “Livro do Génesis”, é a do começo: “No princípio, quando Deus criou o Céu e a Terra.” E uma das suas mais altas, a do “Evangelho de São João”, é-o também: “No princípio, era o Verbo.” Mas mesmo o “Apocalipse”, que diz o fim do tempo, dá as suas últimas palavras a uma vinda, a um recomeço.

Às vezes, gosto de dividir os poetas ente os do começo e os do fim. Sophia e Cesariny são poetas do começo. Sophia declara: “Eu falo da primeira liberdade/ Do primeiro dia que era mar e luz.” Ou canta: “Eras o primeiro dia inteiro e puro/ Banhando os horizontes de louvor.” E a Revolução do 25 de Abril, no poema com que a celebra, é um começo que se segue a um fim, um amanhecer que sucede a uma noite: “Esta é a madrugada que eu esperava/ O dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio/ E livres habitamos a substância do tempo.” Cesariny afirma num poema-colagem de um único grande verso: “Ama como a estrada começa.” E tudo parece dito.

Pessanha e Pessoa são poetas do fim. Diz Pessanha: “Desce por fim sobre o meu coração/ O olvido. Irrevocável. Absoluto./ Envolve-o grave como véu de luto./ Podes, corpo, ir dormir no teu caixão./ A fronte já sem rugas, distendidas/ As feições, na imortal serenidade,/ Dorme enfim sem desejo e sem saudade/ Das coisas não logradas ou perdidas.” Ou: “Cessar… não mais te ver/ Como uma luz se apaga…” Em Pessoa, “Tudo é incerto e derradeiro./ Tudo é disperso, nada é inteiro” e “…já a primeira pancada/ tem o som de repetida”.

Outros há que começam a acabar e acabam a começar. Almada Negreiros começou a gritar “Morra o Dantas, morra!” e acabou a inscrever a palavra COMEÇAR na pedra de um painel. Na demanda que fez da relação nove/dez, do “ponto da Bauhutte” e do cânone, procurava a reversibilidade do passado e do futuro. Almada é o funâmbulo que está sobre o arame a olhar o tempo – às vezes, de cabeça para baixo.

O ano começa e sabemos que este começo é o de uma viagem pelos mares da tormenta. Assim, só resta dar a esta expedição que nos leva um movimento de procura – aquela que descobre, no fim, o depois de um novo começo, que um dia será um novo fim, que outro dia será um novo começo. Da grande amurada do mundo, desenrolemos a corda que une os dois crepúsculos, o que anoitece e o que amanhece, e façamos, nietzscheanamente, do nosso andar sobre ela e sobre o seu abismo a audácia que dança.

O ocaso de um ano é o alvorecer de um outro, naquele ponto da linha da noite em que o fim e o início coincidem. Será esta hora a vigésima quinta, ou já é a primeira?

Por: José Manuel dos Santos

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