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Crise alimentar global e insegurança humana

Theatrum mundi

As questões de segurança voltaram ao primeiro plano das preocupações internacionais de uma forma inédita e dificilmente comparável com o passado. Não se trata de um regresso aos dilemas da guerra fria e da competição nuclear entre as duas superpotências, nem às contingências da diplomacia secreta que conduziu à primeira guerra mundial, nem mesmo às ameaças de agressão de estados que contestam as fronteiras internacionais e as querem alterar com recurso à força. O fenómeno emergente não tem que ver com a insegurança das fronteiras ou com o receio de invasão por parte de exércitos estrangeiros, e mesmo a preocupação com o terrorismo, omnipresente desde 11 de Setembro de 2001, parece ter recuado em vista de novas ameaças à segurança global. O fenómeno emergente é o de uma crise alimentar que é global e que põe em causa direitos humanos básicos como o direito à alimentação, à subsistência e à dignidade. E trata-se de uma crise global porque as dificuldades de acesso à alimentação afectam todas as sociedades e não apenas aquelas que a complacência ocidental entendia perdidas para a fome endémica e a pobreza sem remédio. A subida dos preços dos produtos agrícolas e a escassez alimentar apanharam parte do mundo de surpresa, a parte que até agora se pôde dar ao luxo de ser complacente, e prometem relançar o debate acerca dos custos e benefícios da globalização no centro do próprio mundo que é responsável por ela.

Parece afastada, definitivamente, qualquer explicação simplista e unidimensional para a crise alimentar global que vivemos. O problema já não é visto exclusivamente na óptica da procura, mas também na da oferta, e mesmo em ópticas que nada têm que ver nem com uma nem com outra, como é o caso da especulação financeira. E especular com o preço dos cereais é hoje o nome de um jogo perigoso e imoral nos mercados financeiros globais. É certo que o consumo crescente na Índia e na China faz subir os preços, com a agravante de que o aumento do consumo de carne tem um impacto muito pesado na procura de cereais para a alimentação do gado. Neste ponto, porém, parece que a subida dos preços se deve mais à procura de cereais para a produção de biocombustíveis, de que os Estados Unidos e o Brasil são os principais produtores, com a agravante de que essa procura produz escassez do mesmo produto para alimentação humana. Do lado da oferta, as colheitas têm-se ressentido, nos últimos anos, de fenómenos ambientais pouco favoráveis e que é possível atribuir às alterações climáticas produzidas por efeito humano. Há ainda a dizer que as opções neoliberais que há décadas orientam governos e instituições internacionais descartaram a vantagem de manter vastas reservas estratégicas de alimentos e promoveram a integração global em que, à segurança alimentar, se sobrepõe o valor das vantagens comparativas e da liberdade de comércio. Não é por acaso que, ensaiando uma resposta individual à escassez alimentar, alguns países tenham chegado a estabelecer limites obrigatórios à exportação de alimentos estratégicos, o que não deixa de ser um recuo da globalização e da orientação liberal da economia internacional. Apesar da complexidade das análises sobre esta crise, os diagnósticos não são sempre coincidentes, e assim há quem entenda que ela se deve a um défice de globalização e liberalização e quem entenda que o problema é causado pela própria globalização e pela destruição das economias locais que tende a acompanhá-la.

Seja como for, a ligação entre crise alimentar e segurança humana é fácil de estabelecer e não tem que ver apenas com a óbvia ameaça à dignidade humana que dela decorre. Em todo o mundo, milhões de pessoas vêem diariamente o acesso à alimentação dificultada, e deve impressionar-nos a notícia que nos chega do Haiti de que os mais pobres se estão já a alimentar de um pão feito à base de cereal pobre e lama. Quando as pessoas não têm o que comer morrem, e este é o maior atentado à sua dignidade. Mas a crise alimentar é portadora de insegurança também por via da profunda crise social que pode fazer brotar, um pouco por todo o mundo, e da violência que pode desencadear no seio de cada sociedade. Os motins da fome repetem-se um pouco por todo o mundo e no Haiti já levaram à queda do primeiro-ministro. A utopia marxista do pão gratuito parece estar longe; como longe parecem estar os dias do pão barato. Se, como nos avisam, dificilmente esses dias voltarão, é possível antever a fragilização progressiva e mesmo o colapso de muitas sociedades. Antes de mais, estamos perante um grave desafio à segurança humana.

Por: Marcos Farias Ferreira

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