Leio no jornal a opinião de um advogado com 70 anos acerca da disciplina na sala de aula nos seus tempos de estudante: “bastava o professor franzir o sobrolho para os alunos ficarem logo em silêncio!”. Não me admira que assim fosse há 50 ou 60 anos atrás. Ou até há 20 ou 30. Muita coisa mudou entretanto, a sociedade já não é a mesma, nem os professores ou os alunos. Como bem refere a escritora Alice Vieira, seria bom que este caso da escola Carolina Michaelis constituísse um caso isolado. Mas não é assim. Este acto de humilhação de que foi alvo a professora de francês representa a ponta do icebergue do problema da indisciplina e da violência nas escolas públicas portuguesas (e não se deve confundir disciplina e violência).
Actos de indisciplina na sala de aula sempre existiram, mais ou menos camuflados, mais ou menos grosseiros ou subtis. Quando frequentei as escolas secundárias da Guarda, Sé e Afonso de Albuquerque, lembro-me que em ambos os estabelecimentos de ensino houve registo de graves incidentes de indisciplina. Enquanto professor, também fui confrontado com algumas atitudes menos respeitosas que destabilizavam o processo de ensino-aprendizagem. Todos os professores deste país já se confrontaram com situações semelhantes, mais ou menos gravosas (e refiro-me a todos os níveis de Ensino, do Básico ao Superior). O próprio Procurador-Geral da República assevera que as “imagens comprovam a gravidade da situação”. Mas será que o Procurador se preocupa desta forma veemente quando lê uma notícia no jornal sobre “bullying”? Ou quando recebe queixas de professores relatando casos ainda mais graves? Ou quando lê estudos sobre o crescente fenómeno da violência nas escolas públicas? Claro que não, porque esses meios não têm o poder que as imagens têm. E há que dar prioridade aos factos que as televisões documentam, o resto é secundário. Cada vez mais a agenda política dos responsáveis é ditada pela ditadura da comunicação social de massas e das marés do espectáculo mediático.
Ainda referente ao caso da aluna que agrediu a professora por causa do telemóvel, este está a atingir foros de irresponsabilidade por parte da comunicação social. A SIC divulgou um vídeo no qual se vê um professor a espatifar um telemóvel de um aluno enquanto continua a dar a aula como se nada tivesse acontecido. Este vídeo é claramente falso, uma encenação primária. No próprio YouTube confirma-se que a cena não é real. Será que os jornalistas da SIC aceitam como real e verdadeira toda e qualquer informação vídeo que surja na internet e no YouTube? Ora, como é possível que os jornalistas da SIC, presumivelmente sérios e competentes, possam ter induzido em erro os espectadores mais incautos? Se foi por ignorância (difícil de acreditar dado que bastava uma simples pesquisa para desmascarar o feito), é grave; se foi intencional (o que denota manipulação da informação), é gravíssimo. Mais absurdo ainda: após a transmissão do vídeo, houve um debate em estúdio com um psicólogo e o ex-bastonário da Ordem dos Advogados para a inevitável escalpelização do pretenso problema. A SIC precisa de rever dramaticamente a sua linha editorial e os seus critérios jornalísticos para melhor disfarçar que se rege, basicamente, pelo lado sensacionalista da “verdade noticiosa”.
Todos os dias há reuniões de professores por causa de processos disciplinares, todos os dias há professores que vão para a sala de aula com medo (psicológico e físico) dos alunos e das situações que estes provocam para destabilizar a aula, todos os dias há atitudes de provocação, de insubordinação e de humilhação dos professores, todos os dias há actos de violência (encobertos ou não) e de boicote declarado ao normal funcionamento da prática docente. E tudo isto cria um clima de insegurança para a comunidade escolar, de instabilidade para o sucesso do processo ensino-aprendizagem. Há muitos anos que especialistas da educação chamam a atenção para o facto de que um dos principais motivos para o insucesso e abandono escolar é a indisciplina dos alunos (e tudo o que esta acarreta). Nos últimos 20 anos, ela tem crescido de forma assustadora. Professores que hoje se encontram à beira da reforma, com 30 e mais anos de serviço docente, referem até à exaustão que o panorama na sala de aula se alterou brutalmente desde as duas últimas décadas a esta parte: o estatuto do professor foi perdendo o carácter de autoridade e hoje os alunos não olham para ele com o mesmo respeito que antigamente. A figura social do professor foi sendo desvalorizada ao longo dos anos, e o aluno foi ganhando formas de impunidade e de desresponsabilização. Os sucessivos ministros da educação têm optado por uma via excessivamente burocrática e de facilitismo no sentido de fazer subir, à força, as estatísticas do sucesso escolar. Despoletar um processo disciplinar é enfrentar uma teia burocrática quase kafkiana. As famílias, principais responsáveis pela educação dos seus educandos (ainda que essa responsabilidade tenha sempre tendência de ser sacudida para os professores), descartam-se do acto de educar e de incutir valores em contexto familiar. Por outro lado, a extensão da escolaridade obrigatória, a heterogeneidade da população docente (é verdade que também há professores incompetentes e sem formação), os graves problemas que atravessa a vida social, condicionam decisivamente o funcionamento do microcosmo escolar e exigem a reavaliação do papel do professor. Face a tudo isto, não espanta o nível de profunda desmotivação profissional dos professores (já nem falo do tema da avaliação ou da progressão na carreira). O Ministério da Educação e a sociedade têm de repensar o sistema de ensino, repensar o modelo de educação e desenvolver mecanismos eficientes para fazer face ao problema da indisciplina e da violência na escola. Não só para remediar mas sobretudo para prevenir. Caso contrário, a pergunta que se impõe é: que sociedade e que cidadãos estamos nós a criar?
Por: Victor Afonso