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Requiem pelo Zincos

Lembro-me bem de achar que o prédio do Prolar era um arranha-céus, um bom exemplo de arranha-céus. Não era, continua a não ser. Depois, muito mais tarde, também me lembro de pensar que o Zincos era o melhor bar do mundo. Provavelmente não era, e agora é que não é mesmo.

Ali, durante a maior parte da sua existência, tudo fazia sentido. A começar pela entrada, aquela escada íngreme, cuidado com a cabeça, em direcção à cave de um arranha-céus da Guarda, ou, em noites mais imaginativas, de Nova Iorque, de Londres, Berlim, Barcelona ou Paris… Transposta aquela porta de penitenciária, o cheiro a fumo, mesmo se o bar estivesse vazio. Afinal, depois de inaugurada a fantástica parede Torpedo – West Sad Stoy, ali passou a morar, sempre, Luca Torelli. E para Luca Torelli nunca será proibido fumar em espaços fechados. À esquerda, as três cadeiras de pau, desdobráveis, recuperadas da ruína do Cine-Teatro; uma lenta ventoinha em cima. Foi este recanto que me conquistou logo. Sei-o porque é disso que me lembro primeiro. Antes, o vizinho Hexágono. As horas lentas, marcadas a escudos no contador, o barulho das bolas no pano, a baterem nas tabelas, a caírem nos buracos. Sem pressas. Jogamos outro? Fazia todo o sentido. Como o Dólar lá em cima. Luca gostaria de frequentar um balcão chamado Dólar.

No Zincos nunca estava frio. E nas noites mais gélidas, sabia ainda melhor chegar, largar o casaco algures, pedir uma cerveja. Ver desenhos animados. Sempre gostei de ver as pequenas televisões sintonizadas em desenhos animados, desviar o olhar da conversa, encontrar aquele mundo infantil sem som, os lugares coloridos onde tudo é possível, entre metais cinzentos, garrafas, copos e fumos. Às vezes, parece que tudo é possível. À noite é mais frequente.

Luca Torelli não toleraria habitar esta cave, esta cela ZN, se não cruzasse frequentemente o seu olhar com uma quantas mulheres bonitas. E havia a música, claro, havia a música. E a música, no Zincos, não era funcional, não era ambiente. Sim, a música era importante, era tema de conversa, de obsessões até. Muitas vezes, era uma surpresa, uma revelação, uma descoberta. E o que é isto que está a tocar agora? Qual é a banda sonora desta crónica?

Vem tarde esta crónica, o Zincos já morreu há muitos dias, muitas noites. Mas foi agora – na Guarda, claro – que me deu esta saudade, sentimento de perda, tristeza por perceber que não vale a pena ir tocar naquela campainha, saber que a porta não se vai abrir, que já não há o outro lado. Sad story.

Mas até este meu atraso faz sentido. Afinal, eu era um estranho cliente habitual. Fiel, desde os primeiros tempos, sim, mas nada assíduo – o Rui até me recebeu um dia, um qualquer dia de um mês qualquer, a perguntar «Eh pá, já é a passagem de ano?!». Sim, foram várias passagens de ano no Zincos. Até uma passagem de século, de milénio. Mas o que é isso? Noites relativamente iguais a outras noites, como deve ser. Boas noites.

É tarde. Muito tarde.

Luca, vemo-nos por aí. O mundo é grande.

Por: Pedro Dias de Almeida

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