É a estação mais subtil – e a mais astuta. Nela, tudo é e deixa de ser, despedida e saudade de si mesmo. O dia move-se vagarosamente para a noite sem queda ou abismo. O sol acinzenta-se sem falha ou ruptura. O ar arrefece sem salto ou brusquidão A hora entristece a sua alegria, e esse entristecer é leve como a folha que cai sobre as folhas do chão. Imperceptíveis para nós próprios, já somos outros, porque tudo à nossa volta mudou furtivamente. Os grandes escritores do Outono são melancólicos: a melancolia é consciência do tempo e saber que tudo passa. No Outono, até o silêncio oscila, avança e recua, nega-se três vezes. Marcel Duchamp sugeriu um dia que a beleza “é a sombra do ar na erva”, e há nesta imagem um Outono invencível.
Agora, o tempo é disfarce doutro tempo. É esta uma estação dúplice e dissimulada, como são dúplices e dissimulados os homens que vencem provocando a desatenção dos outros homens. Aqui, a luz é insegura e coincide com a sua fuga. É então que paro o que estou a fazer e olho. Olho o que se vê e o que se não vê. Olho o deslizar da luz para a sombra e da sombra para a luz, esse presente a passar do passado ao futuro pela mão de Heraclito. Proust, por quem tanto se fala do passado, é também um grande escritor do presente. Ele sabia que tudo, mesmo o passado, nasce no presente. Fernando Pessoa/Álvaro de Campos disse: “Porque o presente é todo o passado e todo o futuro.” E Eliot: “O tempo passado e o tempo futuro/ O que podia ter sido e o que foi/ Tendem para um só fim, que é sempre presente.” Wittgenstein usou a imagem da máquina de projectar filmes: “O passado está na bobina de trás e o futuro na bobina da frente – e o presente onde está? É o fotograma que a luz atravessa.” Bachelard lembrou que o presente é a morada do homem: “Há uma identidade absoluta entre o sentimento do presente e o sentimento da vida.” Octavio Paz, no discurso do Prémio Nobel, “A Busca do Presente”, anunciou: “Assim como tivemos filosofias do passado e do futuro, da eternidade e do nada, amanhã teremos uma filosofia do presente. A experiência poética pode ser uma das suas bases.”
O presente é o tempo do corpo: do prazer e da dor. É o tempo dos poetas (Cesário, por exemplo), dos amantes, dos músicos, dos actores, dos aventureiros, dos atletas, dos vagabundos. É o tempo da grande subversão e da grande sublevação. É o espelho do qual a política foge, pois prefere o passado e o futuro. Mesmo as revoluções são feitas num presente, em nome do que o não é. O presente é o lugar, não da revolução, mas da revelação. E da revolta.
Eu gosto do presente, esse tempo tão caluniado, como de um corpo súbito, de um objecto achado. Gosto dos grandes artistas do instante: Van der Weyden, Antonello da Messina, Vermeer, Caravaggio, Georges de La Tour, Chardin, Pietro Longhi, Fragonard, Manet, os Impressionistas, Giacometti, Bacon, Cartier-Bresson. Olho aquelas imagens que vivem um eterno presente e repito com Paz: “É o instante, esse pássaro que está em todas as partes e em nenhuma. Então as portas da percepção entreabrem-se e aparece o outro tempo, o verdadeiro, o que buscávamos sem saber: o presente, a presença.”
Por: José Manuel dos Santos