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Ai, milho verde, milho verde Ai, milho verde fluorescente

observatório de ornitorrincos

Antes de outras palavras, devo explicar aos leitores que a minha ausência destas páginas nas últimas se deveu a uma participação entusiasmante na Ecotopia 2007. Alguns amigos julgaram que eu fora raptado, só porque fui levado, amarrado e amordaçado, metido dentro de um saco de plástico e encarcerado numa gruta natural (lindíssima, por sinal). Erro vosso, meus caros. Não vejo motivos para considerar ilegal o que considero agora ter sido uma graciosa desobediência civil por parte dos organizadores do evento ecológico. As próprias autoridades policiais consideraram não haver motivos para alarme em nenhuma das vezes que nos cruzámos naquele buraco (muito bonito), quando os agentes em passeio deram comigo fixo à parede húmida da caverna (com estalactites preciosas) por uma corrente bastante curta (o que desde já agradeço, já que evitei sofrer o terrível calor de Agosto e receber a fortíssima luz do Sol nos meus olhos fotofóbicos). Recordo até uma conversa simpática com um agente da GNR. Cordialmente, a autoridade explicou-me que a minha permanência naquele lugar (muito agradável, devo acrescentar) era apenas a expressão legítima de uma opinião perante o público. Perante a minha fúria extemporânea dos primeiros dias (que hoje reconheço totalmente descabida), os polícias viram-se na obrigação de me amansar com algumas palavras: “Vamos lá a ter calma, escusa de espernear, estes senhores que o amarraram não lhe estão a fazer mal nenhum. Além disso, o ‘sôtor’ está de férias e não tem de ir a nenhum lado.” Com estas palavras, seis tabefes e duas bastonadas compreendi a razão da minha estadia no acampamento da Ecotopia, mesmo que enclausurado numa escavação rochosa feita pela Mãe Natureza (e estonteante de beleza, deixe-me o leitor dizer-lhe). Eu era afinal um elemento chave das novas conflitualidades emergentes anunciadas por Miguel Portas. Não sendo eu um elemento conflituoso, a verdade é que sem alguém contra quem conflituar as conflitualidades não conseguiriam emergir. E muito menos estas, que são novas. De facto, eu estava para os militantes ecológicos como o Hamas está para Israel. Conduzia um carro poluente, alimentava-me de carne engordada a rações e tomava banho diariamente. Era um inimigo. Hoje percebo que sozinho contribui para o descongelamento de 685 m3 de gelo polar. Apesar da minha renitência inicial, ter remanescido duas semanas na Ecotopia culminou numa epifania. Com as mãos e os pés agrilhoados senti, como um apelo, o meu importante contributo para a emergência das novas conflitualidades. A privação de movimentos dos membros aligeirou-me o pensamento. Como me foi ensinado nas várias oficinas de vida ecológica, comunitária, anti-liberal e alter-globalizante, eu estava acorrentado à parede, sim senhor, mas os principais ferrolhos da minha vida eram simbólicos. Havia ali metáfora platónica. Preso à parede na caverna, na realidade eu estava trincafiado pelas amarras de um mundo injusto e cruel. A lei penal descreve de forma absurda o acto dos ecotópicos como “sequestro” e prevê numa lógica abjecta pena de prisão para os seus executores. Não posso discordar mais dessas considerações legalistas. Quem está em dívida sou eu. Afinal, o principal prejudicado da vida regalada que levava era eu. Felizmente, durante o tempo que estive em repouso na gruta natural de Aljezur, um grupo de combatentes em prol de um nosso melhor futuro entrou-me em casa e levou-me a televisão, o leitor de DVD, o computador de mesa e o portátil, o sofá reclinável, o forno microondas. Tal como ao agricultor de Silves que plantava o abominável e inefável milho transgénico, o que nos fizeram foi um favor. A mim, ao agricultor e ao mundo. Agora também eu rejeito os transgénicos. É por isso que, contrariamente ao que pensava antes, não concordo com a chamada de Pepe à selecção.

Por: Nuno Amaral Jerónimo

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