Tem muito de paradoxal o empenho do governo Sócrates na presente presidência portuguesa da União Europeia. É que, no limite, o seu êxito ficará ligado à aprovação de um novo tratado, o já apelidado Tratado de Lisboa, que prevê precisamente a eliminação do actual sistema de presidências rotativas por períodos de seis meses. Desde a adesão em 1986, Portugal assumira já a presidência da UE por duas vezes anteriormente, em 1992 e em 2000, e essas duas ocasiões ficaram associadas à alteração do ciclo político interno. Primeiro com Cavaco e depois com Guterres, a governação pareceu voltar-se definitivamente para as questões de política externa, com as oposições e os comentadores a deplorarem o esquecimento a que ambos relegaram as matérias do dia-a-dia, e que são aliás as que fazem ganhar e perder eleições… Para muitos, Cavaco e Guterres cansaram-se de governar com o exercício da presidência da UE, ou melhor, passaram a olhar para a política interna com o desprezo de quem assume responsabilidades maiores e se vê talhado para outro tipo de funções, de quem priva intimamente e trata por tu um número considerável de dirigentes europeus, índice supremo da relevância política. Seria, no fundo, uma questão de escolha entre alta política e pequena política. Para muitos, o exercício da presidência da UE fez mesmo surgir uma nova lei férrea na política portuguesa, ao lado da dos cestos e dos ovos, segundo a qual esse é o momento do princípio do fim de um ciclo político. Durante seis meses, todo o aparelho governativo está centrado no infindável processo da negociação europeia, na organização de diferentes conselhos de ministros, uns mais outros menos formais, na recepção dos comissários, em campanhas de charme e de eficiência com o objectivo de demonstrar aos parceiros que o país tem capacidade para liderar a Europa, para não falar da realização da agenda específica de cada presidência. E no meio do turbilhão negocial, o primeiro-ministro sempre em périplo pela União e para lá dela, a exercer a sua função de intermediário político e facilitador de consensos, de sucedâneo de presidente da Europa. Não é preciso muita intimidade com o poder para perceber que o deslumbramento é possível e que a consequência provável é a quebra definitiva da comunicação com o eleitorado. Ora, há quem entenda, e esteja à espera, que esta última presidência vai ser a demonstração dessa nova lei férrea da política portuguesa. É que à actividade habitual da governação europeia vem juntar-se a exigência de organizar uma conferência intergovernamental para aprovar, a 27, o texto do novo tratado que ainda terá que ser negociado até Outubro. Como gosta de sublinhar Sócrates para afastar a discussão do referendo, o que existe agora é um mandato para negociar um tratado e não o tratado propriamente dito. Para além do mais, a agenda da presidência portuguesa é especialmente ambiciosa em matéria de política externa. A abrir o semestre foi a cimeira Europa/Brasil, e a concluir será a cimeira Europa/África, o que tudo promete fazer de Portugal uma placa giratória da diplomacia multilateral global. Com Sócrates cada vez mais presente nos media de meio mundo, há quem vaticine o seu próximo e inevitável aborrecimento da pequena política, leia-se, da política portuguesa.
Por: Marcos Farias Ferreira