«“Para Sempre” é um livro extraordinário, talvez um dos melhores que se escreveram no século XX»

Escrito por ointerior

P – Foi professor de Português e de Literatura, nomeadamente na escola secundária Afonso de Albuquerque, o antigo liceu da Guarda, e ao mesmo tempo teve sempre uma grande disponibilidade cívica e cultural.

R – Fui professor durante muitos anos e houve muita gente que, como se costuma dizer, me passou pelas mãos. E também é verdade que gosto de manter essa disponibilidade. Enquanto posso, e puder, estarei disponível para aquilo que me convidem, no âmbito cultural e literário, que é do que gosto mais, o que não quer dizer que, de vez em quando, não meta a minha colherada na política. Gostei e gosto de ser professor, lecionei fundamentalmente língua portuguesa e literatura portuguesa, e ainda dei aulas de Pedagogia na antiga escola do Magistério Primário. Tudo isso contribuiu para uma certa amplitude na maneira de ver e de apreciar a realidade, e a realidade literária também.

 

P – Quantos anos foi professor?

R – Vim para a Guarda dar aulas em 1968-69, no então Liceu Nacional, como se chamava na altura a atual Escola Afonso de Albuquerque. Fiz aqui o liceu, onde fui aluno, por exemplo, do doutor Bonito Perfeito, depois fui para a faculdade em 1964 fazer o curso de Filologia Românica e regressei em 68. Até que, em 1973, malhas que o Império tece, fui parar às bandas de além, fui mobilizado e estive em Moçambique, onde agora as coisas estão muito complicadas. Foi uma coisa muito complicada para mim. Não tinha qualquer gosto pela vida militar.

P – Viveu o 25 de Abril em África?

R – Exatamente. Se fosse o Baptista-Bastos e me perguntasse onde é que estava no 25 de Abril, eu responderia, estava na Maconha, em Cabo Delgado, no interior de Moçambique.

P – Além de professor, esteve sempre presente na vida cultural da cidade e foi, por exemplo, membro da primeira Comissão Executiva do Centro de Estudos Ibéricos e autor da antologia “Guarda Livros – Textos e Contextos” e, entre outras obras, colaborou em “A Guarda Formosa na Primeira Metade do sec. XX”…

R – Se houve coisa que muito me enriqueceu foi a participação na Comissão Executiva do Centro de Estudos Ibéricos quando foi criado. Tive muito gosto em participar numa instituição que tinha por principal mentor essa grande figura que foi o professor Eduardo Lourenço, de quem tive o privilégio de ser amigo e sei que ele também era meu amigo.

P – Nessa sua disponibilidade cívica também interveio politicamente…

R – Fui um cidadão com intervenção cívica, escrevendo em jornais, participando na vida ativa da cidade, inclusive politicamente. Fui candidato por várias vezes. Fui deputado municipal, candidato à Assembleia da República pela APU, primeiro era do MDP e integrei uma lista de que fui cabeça de lista – é evidente que não entrei, não houve votos para entrar, mas candidato fui. Mais tarde, já mais próximo ao Partido Socialista, como simpatizante, estive na Assembleia Municipal, mas só num mandato.

P – Foi mandatário de Jorge Sampaio à Presidência da República…

R – Sim, fui mandatário distrital nas duas vezes que Jorge Sampaio concorreu.

P – E foi condecorado pelo Presidente da República com a Ordem da Instrução Pública, no grau de Comendador.

R – Digamos que foi uma coroa de glória, o Presidente da República conferiu-me uma comenda por mérito, pela forma como exerci a minha profissão. Jorge Sampaio foi uma das minhas grandes referências.

P – Só muito depois recebeu a medalha de Mérito Municipal (em 2018), como personalidade ilustre do concelho da Guarda?

R – Outro privilégio que recordo com muita honra. Era presidente da Câmara Municipal Álvaro Amaro e quem a entregou, porque presidiu à sessão, se não me engano, foi o então ministro Eduardo Cabrita.

P – Falemos de Vergílio Ferreira, o escritor, uma referência, sobre quem muito escreveu e de que fala muitas vezes.

R – Há uma parte da minha família que é originária de Melo e, ainda que de forma afastada, havia uma ligação familiar com a família da minha mãe. Até por isso, a minha ligação cultural, literária e afetiva com Vergílio Ferreira é muito, chamemos-lhe mesmo, relativamente precoce. Comecei por ler aquele livro que normalmente se lê como uma espécie de contestação, “Manhã Submersa”, que é, de facto, uma obra difícil.

 

P – Se tivesse que escolher uma obra de Vergílio Ferreira, qual escolheria?

R – Escolheria “Para Sempre”, é um livro extraordinário, talvez um dos melhores que se escreveram no século XX. E depois as “Cartas a Sandra”, que é uma espécie de continuação. Além de ficcionista, Vergílio Ferreira também me marcou muito na parte do ensaio literário. “O espaço do invisível”, todas essas obras também ensaísticas são muito importantes, bem como a “Conta-corrente”, que são cinco volumes e é uma espécie de diário, mas um diário em que Vergílio Ferreira, também muito explicitamente, critica quem tem que criticar e não está com meias tintas, nem com palavrinhas mansas. Há pessoas de quem ele gostava pouco. Ele não gostava nada de Miguel Torga, por exemplo, e nunca percebi bem de onde é que vinham as grandes incompatibilidades.

P – Entretanto, em Melo, foi recuperada a casa “Vergílio Ferreira, para sempre”. Vai ser o centro de interpretação da obra do escritor?

R – Sim, espero que isso aconteça.

P – Em 2023, comemoraram-se os cem anos de nascimento de Eduardo Lourenço. Que recordações tem do ensaísta?

R – Eduardo Lourenço era um amigo, tínhamos uma relação de proximidade essencialmente construída pelas letras. Era uma figura maior, com uma projeção a variadíssimos níveis e uma humildade que manifestava nas pequenas coisas, essa simplicidade, essa sinceridade, era uma coisa extraordinária. Ainda com o meu querido amigo e conterrâneo, o Jaime Alberto Couto Ferreira, o Rui Jacinto, com o professor Valentim Cabero, etc. Recordo a inauguração do Centro de Estudos Ibéricos com o presidente Jorge Sampaio. Eduardo Lourenço é uma referência tutelar, uma figura de proa literária e ensaística. O Vergílio Ferreira metia-se muito com ele porque escrevia várias coisas e nunca escreveu um livro, um livro de peso. Tem uma obra ensaística extraordinária, mas Eduardo Lourenço achava que escrever livros não era a sua vocação.

P – Como vê a Guarda hoje, nomeadamente em termos culturais?

R – Não a tenho acompanhado tanto como acompanhei há uns anos atrás. Há uma figura que teve um papel muito, muito, muito importante, na divulgação e na dinamização cultural da cidade, que foi o Américo Rodrigues, também meu grande amigo. A Guarda deve muito ao Américo Rodrigues.

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Perfil:

António José Dias de Almeida

Professor aposentado

Naturalidade: Famalicão da Serra (Guarda)

Idade: 79 anos

Currículo (resumido): Licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa, exerceu funções docentes na Secundária Afonso de Albuquerque, na Guarda; Foi professor de Português e de Literatura; Membro da Comissão Executiva do Centro de Estudos Ibéricos; Autor da antologia “Guarda Livros – Textos e Contextos”; Colaborou, entre outras obras, no livro “Guarda Formosa da primeira metade do século XX”

Livro preferido: “Para Sempre”, de Vergílio Ferreira

Filme preferido: “Oito e meio”, de Federico Fellini

Hobbies: Leitura.

Sobre o autor

ointerior

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