Muitos argumentos se esgrimam quando as questões em debate são do foro da moral e da ética, até mesmo da bioética.
Estaremos, talvez, na altura de assumir, colectivamente e individualmente, o lado em que nos posicionamos sobre a questão da despenalização da interrupção voluntária da gravidez, no contexto do nosso País e da Europa.
Não serão os muitos textos, fotografias, esquemas ou citações do novo e velho testamento que farão as pessoas ser contra ou a favor da despenalização da interrupção voluntária da gravidez.
Esta escolha faz-se por princípios mais estruturantes, mais globalizadores do ser humano, que têm a ver com as suas vivências e posicionamento face à vida e à sociedade que a pessoa preconiza. Assim, não será por ver um feto com ferros espetados na cabeça (aliás, uma imagem atroz e de uma violência assustadora!) que um indivíduo vai defender que as mulheres sejam julgadas, condenadas e presas por fazerem um aborto.
Também não me parece razoável que seja a definição do que é a vida, quando começa e a quem pertence, que importe, de facto, à tomada de posições. A vida, na nossa sociedade de raízes judaico-cristãs, é um bem inalienável. Ninguém põe isso em dúvida. Nem se trata de saber qual a vida que vale mais. Já sabemos que para alguns, a opção da mulher deverá ser respeitada e para outros a promessa de vida deve prevalecer sobre a decisão da mãe.
Mas alheia a toda esta troca de argumentos, factos científicos, estatísticas, finuras e testamentos, novos ou velhos, existe uma multidão de mulheres, que sempre existiu e que poderá estar na iminência de recorrer ao aborto. O que fazer com esta realidade?
Fechar os olhos e prosaicamente dizer que só engravida quem quer e, por isso, levá-las a julgamento e condená-las a pena de prisão?
Ou, por outro lado, decidir que chegou a hora de fazermos o reencontro do nosso país com os padrões da civilidade e despenalizar a interrupção voluntária da gravidez?
Desde 1998, ano do referendo sobre este mesmo assunto, até hoje, os abortos continuaram a fazer-se, e mais grave ainda, mulheres morreram, e, como se isso não bastasse ainda se julgaram mulheres em tribunal por, supostamente, terem praticado o aborto.
Estaremos dispostos a continuar a aceitar esta promiscuidade entre a moral cristalizada e a moldura jurídica que regulamenta a nossa vida? Num país democrático e de direito, em que o estado é laico, não se pode continuar a tolerar que a moral religiosa revestida, neste caso, de contornos fundamentalistas, continue a impor-se a todos os valores de civilidade e de decência, no respeito, esse sim, da vida humana.
(…).
Mónica Ramôa, carta recebida por e-mail