Especial 50 anos 25 de Abril Sociedade

O 25 de Abril na Guarda narrado pelo capitão Valente

Relatório
Escrito por Jornal O Interior

Tal como em 2000, O INTERIOR volta a publicar o documento confidencial enviado a 4 de maio de 74 para o MFA pelo então capitão Augusto Valente. Neste relatório dos acontecimentos «ocorridos e relacionados com o Movimento das Forças Armadas de 25 de abril», que transcrevemos na íntegra, o oficial, que liderou a atuação do RI 12, explica as etapas das primeiras horas da Revolução. Um registo direto onde se podem reviver alguns momentos de maior tensão durante a manhã, depois do comandante do regimento ter mandado «armar, municiar e preparar para sair» a Companhia Operacional. E após a segunda refeição, quando se deu a prisão dos dois comandantes, «juntos nessa altura, longe da presença de qualquer sargento ou praça, de cujo comportamento ainda se duvidada». O coronel Ribeiro, «após uma natural surpresa, acatou a intimação e não resistiu, mas o tenente-coronel Jorge Teixeira tentou resistir e avançou para mim pelo que tive que disparar um tiro para o chão para o fazer recuar», refere, lembrando que ambos ficaram detidos nos seus quartos. Este deve ter sido um dos poucos disparos efetuados no dia 25 de abril. Não houve reação das forças policiais e os agentes da Direção-Geral da Segurança entregaram-se «imediatamente sem oferecer a mínima resistência», tendo colaborado com os soldados «apresentando-se imediatamente no quartel com as suas armas». Um documento indispensável para a história do 25 de abril na Guarda.

«Cheguei a este Regimento em 21 de Março de 1974 vindo do CIOE [Lamego], donde fui transferido após o movimento das Caldas da Rainha. Pouco tempo depois da minha apresentação reatei a ligação com o Movimento através de contactos com oficiais do RI 14, de Viseu, e com o oficial de ligação do quartel-general da Região Militar do Centro. Após o estudo da situação e com base ainda em elementos que me foram transmitidos, conclui da dificuldade de fazer aderir de imediato esta Unidade a qualquer movimento que se viesse a verificar, conforme previa, conclusão esta que transmiti aos oficiais do RI 14. As razões que me levaram a tais conclusões foram:

1º – O facto de quer o comandante da Unidade [coronel António José Ribeiro] quer o 2º comandante [tenente-coronel António Jorge Teixeira], pernoitarem sempre no quartel e com armas no quarto;

2º – O facto do comandante haver sido punido pelo General Spínola na Guiné, não o aceitando de forma alguma para chefe do Movimento;

3º – O facto do 2º comandante não aceitar também o General Spínola para chefe do Movimento, pois não lhe tolerava atitudes que, disse, ele tomara na Guiné;

4º – O facto do comandante da unidade haver sido um dos que afirmara ao seu General Comandante da Região cem por cento de lealdade do Regimento;

5º – O facto de, no Regimento, ser o único oficial ativo do Movimento, dado que o capitão Alcino Pina, que tinha aderido, não ser pessoa para atitudes de força contra o seu comandante em consequência da grande amizade que os ligava;

6º – O facto de no campo da mentalização das praças, sargentos e oficiais pouco se ter feito até à altura em que cheguei ao Regimento.

Em consequência destas razões afirmei não poder garantir a adesão imediata da unidade a qualquer movimento, mas que estava dentro das minhas possibilidades, após a eclosão do Movimento:

Não permitir a saída de tropas contra o Movimento garantindo assim, no mínimo, a neutralidade do Regimento;

Aproveitar a reação natural do comando, mesmo contra o Movimento, e invertê-la levando-a a ser favorável a este.

Desde que cheguei ao Regimento dediquei-me a uma mentalização sobre oficiais, sargentos e praças.

Evolução dos acontecimentos:

Embora previsse para breve a eclosão dos acontecimentos, fui surpreendido às 21h15 do dia 24 pela presença do oficial de ligação do RI 14 que me confirmou para aquela noite o início das operações. Dado o adiantado da hora fui com ele de automóvel até Viseu e pelo caminho tomei conhecimento dos pormenores. Em Viseu tomei nota dos mais importantes e fiquei a saber que a missão do Regimento era marchar para Vilar Formoso, encerrar a fronteira e impedir a fuga de elementos afetos ao regime deposto. Como o Capitão Pina se encontrava ausente em Pinhel, fui nessa mesma noite contactar com ele e acertar procedimentos. Tinha resolvido prender o Comandante e o 2º Comandante, mas tinha muitas dúvidas sobre a forma como o haveria de fazer.
Em conversa com o Capitão Pina, este surpreendeu-me com a sugestão de não dar execução imediata à missão recebida e aguardar que o Comandante tivesse conhecimento dos factos a ver se se conseguia a sua adesão. Muito embora contrariado, aceitei a sua sugestão pois concluí que, sozinho, para já, nada poderia fazer e que, por outro lado, de tal decisão não resultaria prejuízo para o Movimento uma vez que a missão do RI 12 não era decisiva para o início dos acontecimentos. Eram 3h00 do dia 25 quando entrámos os dois na unidade e aguardámos pela manhã. Logo que tive a certeza que o comandante fora informado pelo quartel-general, falei com ele expondo tudo o que sabia e que não comprometia o Movimento, sugerindo-lhe a sua adesão e fazendo-lhe ver mesmo que a missão que fora atribuída ao Regimento poderia ser por ele cumprida sem se comprometer com a Região Militar, uma vez que, dado que esta não lhe dava quaisquer instruções, poderia alegar, qualquer que fosse a marcha dos acontecimentos, que tomara aquela atitude como simples medida de segurança.
Entretanto verifiquei que o comandante mandara armar, municiar, equipar e preparar para sair a Companhia Operacional. Contactei então com os comandantes de companhia e pelotão, narrei-lhes os acontecimentos e pedi-lhes para, caso o comandante lhes desse ordem de marcha, seguirem para Vilar Formoso e cumprirem a missão que o Movimento incumbira a este Regimento. E avisarem-me assim que a companhia estivesse pronta, dizendo-lhes que poderia ter que prender os comandantes, caso não aderissem com oportunidade ao Movimento, ao que me deram todo o seu apoio.
Em conversa havida com os dois comandantes, cerca das 10 horas do dia 25, obtive a certeza de que estes não adeririam ao Movimento enquanto a situação não se definisse melhor. Concluí, pois, que se queria cumprir com oportunidade a missão recebida, teria de os deter. Um rápido estudo da situação levou-me a concluir que após a segunda refeição seria a melhor oportunidade para executar a prisão, uma vez que os dois nessa altura se encontrariam juntos, longe da presença de qualquer sargento ou praça, de cujo comportamento ainda se duvidada. Resolvi prendê-los então e montar guarda à messe de oficiais com os aspirantes a oficial que frequentavam a Escola de Quadros e que tinham armas na messe. Uma conversa rápida com eles garantiu-me a aprovação do plano e a sua fácil e rápida execução, mandando então que fossem levantar munições.
Durante a segunda refeição confirmei, mais uma vez, que o comando continuava leal à Região Militar e que só aderiria ao Movimento quando tudo se esclarecesse. O 2º comandante apoiava o comandante. Finda a refeição, fui ao quarto, peguei numa pistola e dei voz de prisão aos dois. O coronel Ribeiro, após uma natural surpresa, acatou a intimação e não resistiu, mas o tenente-coronel Jorge Teixeira tentou resistir e avançou para mim pelo que tive que disparar um tiro para o chão para o fazer recuar. Ambos ficaram nos seus quartos com a segurança montada pelos aspirantes a oficial.
A companhia operacional encontrava-se já formada e pronta a partir pelo que, cerca de cinco minutos depois, saímos do quartel rumo a Vilar Formoso. Assumi o comando da força e o capitão Pina o comando da unidade. Mais tarde o comandante e o 2º comandante foram transferidos para o Hotel Turismo da Guarda, onde ficaram detidos sob sua palavra de honra. Marcharam em 26 de Abril para o quartel-general da Região Militar do Centro.
As forças policiais mantiveram-se nos quartéis.
Face aos acontecimentos pode concluir-se que o coronel Ribeiro aderiria ao Movimento, mas só quando tudo se esclarecesse e definisse. Aliás, quando a Junta de Salvação Nacional fez a sua primeira proclamação, teve a seguinte exclamação: «Agora sim, tudo está legal». O 2º comandante, tenente-coronel António Jorge Teixeira, teria tido grande influência na não adesão do comandante mais cedo. Todos os oficiais aceitam a atitude do comandante mas reprovam a do 2º comandante. Verificou-se a total e imediata adesão dos oficiais (à exceção do comandante), sargentos e praças do Regimento. No tocante a sargentos notou-se porém a reação contra o Movimento durante o dia 25 por parte do 1º sargento Lúcio Agostinho dos Santos.
A GNR manteve-se dentro dos quartéis até ao momento em que, já sob novo comando, retomou a atividade normal. A PSP idem. A Guarda Fiscal continuou a sua atividade normal na fronteira, não opondo qualquer resistência e afirmando que o que se passava não lhes dizia respeito. Quanto à Direção Geral da Segurança, entregou-se imediatamente sem oferecer a mínima resistência. Permito-me realçar a sua conduta, porquanto muitos elementos, estando em suas casas e sabendo que iam ser detidos se apresentaram imediatamente no quartel com as suas armas. Refiro ainda que os ex-chefes das brigadas de Vilar Formoso e da Guarda são pessoas estimadas na região.
Cabe no fim uma palavra para evidenciar a atuação dos aspirantes a oficial que frequentavam a Escola de Quadros, porquanto a sua atitude foi fundamental. Evidenciaram-se ainda os oficiais comandantes da companhia operacional e dos seus pelotões, pela energia e desembaraço com que atuaram. Realço também a conduta de todos os soldados, e em particular os da companhia operacional, porquanto não se verificaram hesitações algumas e mantiveram sempre o moral bastante elevado.

Guarda, 4 de Maio de 1974
Augusto José Monteiro Valente, capitão»

Sobre o autor

Jornal O Interior

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