Especial 50 anos 25 de Abril Sociedade

Luís Anastácio, um tenente na Revolução de Abril na Guarda

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Foi com um tiro para o chão, na messe de oficiais do Regimento de Infantaria (RI) 12, que começou a revolução na Guarda no dia 25 de Abril de 1974. Cinquenta anos depois o disparo ainda ressoa na memória de Luís Anastácio, então tenente miliciano no quartel da cidade mais alta, que também não esquece a «coragem sobrenatural» do seu autor, o capitão Valente.
O episódio aconteceu já depois do almoço, numa altura em que história seguia o seu curso em Lisboa e chegou, aos poucos, à cidade mais alta, onde as notícias demoravam a chegar. Com 29 anos, Luís Anastácio acabou por ser também um dos protagonistas da Revolução ao assumir o comando do quartel do RI12 enquanto Monteiro Valente foi vigiar a fronteira de Vilar Formoso. O dia começou diferente do habitual: «Como morava fora do quartel, foram-me buscar às 7 da manhã para o RI12 ficar operacional com todos os elementos. Nós não sabíamos de nada e só depois do almoço é que soubemos o que se estava a passar», recorda o engenheiro eletrotécnico, que presenciou o frente-a-frente entre o capitão Valente e o segundo comandante da unidade. «Ao fim do almoço, só vimos chegar o capitão Valente à messe dos oficiais de pistola na mão, acompanhado de dois ou três aspirantes armados com G3. O comandante não reagiu e o segundo comandante levantou-se. Ficamos todos admirados. Quando este se levantou, o capitão Valente mandou um tiro para o chão e ele sentou-se, não teve outro remédio», recorda Luís Anastácio.
O coronel António José Ribeiro e o segundo comandante, o tenente-coronel António Jorge Teixeira, receberam ordem de prisão e foram levados para os respetivos quartos. Resolvida a primeira tarefa do capitão de Abril na Guarda, Monteiro Valente arrancou de imediato para Vilar Formoso com uma companhia para vigiar a fronteira, deter os elementos da PIDE e impedir a fuga de apoiantes do regime deposto. «Eu era tenente miliciano e o oficial mais graduado, pelo que fiquei a comandar o quartel», esclarece Luís Anastácio, que não se lembra de ter sido incumbido de tal função. «Foi tudo tão rápido que não houve conversa nenhuma. Aconteceu naturalmente: eu era o mais graduado na parte operacional – havia um capitão, mas nem a pistola usava», esclarece. No entanto, o comando foi logo posto à prova quando o chefe dos serviços do quartel, o capitão Pina, soltou os dois oficiais que estavam detidos. «Foi uma desautorização, mas eles capacitaram-se que a revolução ia prosseguir e, entretanto, o capitão Valente ordenou que os prendessem no Hotel Turismo para ele poder regressar ao quartel», acrescenta Luís Anastácio.
Sem saída, António José Ribeiro e António Jorge Teixeira deram «a palavra de honra» de que não iriam fugir nem fazer nada para contrariar a ordem do capitão Valente e foram levados para o hotel, a cem metros do quartel. «Fui eu e o capitão Pina quem os levou de carro, com motorista. Podíamos ir a pé, porque era a dois passos, mas fomos no Volkswagen de serviço», especifica Luís Anastácio, que garante que o ambiente era «tranquilo» no quartel «quase vazio» com a ida do capitão Valente para a fronteira. «Só havia uma companhia operacional na Guarda, pelo que ficou o capitão Pina, eu, o comandante e o segundo comandante detidos, os soldados de serviço e alguns dos tais aspirantes da escola de quadros», enumera. Lá fora, as pessoas foram-se juntando em frente ao quartel para «nos aplaudir porque o país estava absolutamente insatisfeito com a gestão do Governo, com as obrigações impostas e com as prisões, que havia constantemente. Vivia-se numa insegurança social muito grande, por isso é que toda a gente aderiu. Foi a revolução que pôs termo ao que se estava a passar em Portugal, o Governo fazia, cortava e riscava independentemente de ferir este ou aquele», sublinha.
Na manhã de 26 de abril Luís Anastácio foi render Monteiro Valente na fronteira. «Não se via ninguém. Sei que no dia 25 ainda houve algumas pessoas que foram saber o que se passava, mas depois não houve movimento nenhum, nem do lado espanhol», recorda. Nessa altura já os agentes da PIDE estavam detidos numa sala. «Seriam uns 15, talvez. Não fugiu nenhum, nem reagiram sequer à detenção efetuada pelo capitão Valente… As esposas telefonavam a saber deles e a certa altura autorizei que lhes trouxessem colchões porque estavam a dormir no chão», relata, revelando que foi ele que trouxe os pides para a Guarda. Com a fronteira fechada e ordens para ninguém entrar e sair do país, a certa altura Luís Anastácio foi confrontado com a chegada de um grupo de jovens que tencionava viajar até à pista de Jarama, perto de Madrid. «Telefonei ao capitão Valente a saber o que fazer, porque as ordens era não deixar passar ninguém para evitar que alguém comprometido com o antigo regime fugisse, e a resposta foi para eu escolher e deixei-os passar», assume.
Luís Anastácio esteve «dois dias e meio» em Vilar Formoso e voltou para a Guarda no mesmo dia em que Mário Soares regressou a Portugal. Acontecimento a que já não assistiu porque tinha sido substituído por um alferes. «Regressei ao quartel e não tive muito mais a fazer, a não ser um dia em que o capitão Valente foi ao RI 14, em Viseu, de que dependíamos, e me telefonou a dizer para por o quartel de prevenção e em defesa porque havia o receio que houvesse alguma reação e tentativa de atacar o quartel. Por isso, montamos armas pesadas, mas felizmente não aconteceu nada», constata o então tenente miliciano. Seguiram-se dias agitados, mas também as sessões de esclarecimento do MFA nas aldeias do distrito e a manutenção da ordem pública. «Lembro-me de uma manifestação do MRPP, que partia da Praça Velha, mas não estava autorizada. Aquilo estava pejado de gente. Cheguei lá com uma companhia e um camião, que mandei estacionar na Rua do Comércio com o toldo aberto, à entrada da praça, e foi carregar o material de propaganda e mais de 150 manifestantes. Quando cheguei ao quartel só lá iam uns doze e, desses, quatro eram menores. Alguns dos oito manifestantes que foram efetivamente presos acabaram por iniciar uma greve de fome, foi o caso de Carlos Baía, que eram um dos mais ativos. Depois houve uma manifestação à frente do quartel contra essas prisões, mas felizmente tudo correu bem», diz, com satisfação.
Foi também Luís Anastácio que organizou e supervisionou as primeiras eleições democráticas no distrito. Nomeado delegado nacional, acabou por passar à reserva a partir do Governo Civil: «Pouco depois do 25 de Abril não voltei mais ao quartel», lembra, acrescentando que ainda esteve em reserva estratégica com a sua companhia em Santa Margarida para avançar sobre Lisboa «se fosse necessário». Posteriormente foi transferido para o Porto, onde formou uma companhia na Serra do Pilar para ir para Cabinda. Luís Anastácio já não foi porque entretanto saiu uma ordem que desmobilizava os oficiais milicianos da guerra no Ultramar.

«O esforço foi nosso, o risco foi nosso e agora a festa é dos outros»

Cinquenta anos depois do 25 de Abril, Luís Anastácio diz com mágoa que os militares do RI 12 foram esquecidos nas comemorações da Guarda.
«Foi pena não terem convidado quem mais merecia para a sessão solene que a Câmara vai promover, mas, enfim, o tempo passa, não é uma ofensa que fique», lamenta, considerando que é todo o regimento, «dos graduados aos praças», que devia ser homenageado. «Há um desrespeito. O esforço foi nosso, o risco foi nosso e agora a festa é dos outros», aponta Luís Anastácio, para quem comemorar o 25 de Abril sem os militares «é não darem importância a quem fez a Revolução». O antigo oficial miliciano confessa ter ficado «sentido» com o sucedido, tal como os colegas, que vão ter lugar reservado na zona do público para assistir à sessão e à entrega da Medalha de Honra da cidade, a título póstumo, ao capitão Valente – que será recebida pela esposa.
«Houve esse favor de podermos assistir à cerimónia, mas não nos importamos muito com isso. Até porque temos um grupo de ex-militares do RI 12 que se encontra de vez em quando e vamos fazer o nosso habitual almoço de 25 de Abril, para mostrar que também existimos, no qual vamos contar com a presença da esposa do capitão Valente», adianta Luís Anastácio.
De resto, estará previsto para breve o reconhecimento da Presidência da República a estes militares pelo seu trabalho na segurança do país nesse período de transição. «Todos vamos ser homenageados com uma medalha de ouro pelo Presidente, mas agora é preciso fazer o levantamento de todos os militares que estavam cá», indica. Na sua opinião, este é um reconhecimento «que merecemos e que, claro, no meu caso, me enche de satisfação».

«O capitão Valente era um homem com uma coragem sobrenatural»

«O capitão Augusto Monteiro Valente era um homem com uma coragem sobrenatural, só a disposição de dar aquele tiro. Aquilo aconteceu porque o comandante do quartel reagiu, levantou-se do sofá quase com ar agressivo. O capitão Valente vinha com a arma com munição na câmara e mandou logo um tiro para o chão porque o segundo, tenho a certeza, que o dirigia à pessoa. Nós ficámos espantados de ouvir ali um tiro dirigido a uma pessoa, foi um ato corajoso e que nos mereceu respeito. Foi um gesto absolutamente consciente do capitão Valente, que soube manter o sangue-frio», elogia Luís Anastácio, para o quem o “rosto” da revolução na Guarda era «uma pessoa excecional, mas muito reservada».
No seu caso, o desempenho militar no período pós-revolucionário valeu-lhe um louvor. «Foi o coronel Vieira Monteiro, que veio depois comandar o RI12, que mo deu. Está lá tudo o que fiz, até me admiro com o que lá está, fui melhor do que julgava ter sido», emociona-se. E como olha agora para estes 50 anos de democracia? «Agora estamos pior em termos de partidos políticos, a meu ver… Os primeiros anos foram de aprendizagem do que é a democracia, mas suponho que agora estamos habilitados a ser democratas sem qualquer esforço, naturalmente somos democratas», afirma Luís Anastácio, que se sente «realizado» por ter feito parte do grupo de militares que participou na Revolução dos Cravos: «Não era um revolucionário enquanto estudante em Coimbra, onde senti algum sentimento de revolta por tudo o que se passava. Não esqueço a manifestação de 1969, quando foi inaugurada uma sala na Universidade, e houve uma série de colegas que foram presos pela PIDE. Aliás, considero que o primeiro passo da revolução começou em Coimbra, nessa inauguração quando Alberto Martins pediu a palavra», sustenta.

Luís Martins / Luís Baptista-Martins

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Luís Baptista-Martins

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