1. O Dia Mundial do Teatro foi comemorado a preceito na AR. Com efeito, o país assistiu a uma encenação portentosa da “A importância de ser presidente” (Oscar Wilde que me perdoe), peça em três actos e um epílogo. Com efeito, o melhor teatro confunde o espectador. Parece que cai uma cortina sobre a realidade, para melhor a revelar. As coisas não parecem ser o que são, mas precisamente por isso, passam a ser o que parecem. Em bom rigor, o que aparentava ser uma formalidade, baseada em acordos de cavalheiros e praxes mais ou menos intocáveis, descambou numa comédia de enganos. Ou, noutra perspectiva, num ensaio geral do velório de Montenegro, onde todos já se posicionam. Noutra escala, o trailer do filme em que esta legislatura corre o risco de se tornar. Em comum, uma trama onde a táctica partidária prevalece sobre a responsabilidade e o interesse colectivo. Basicamente, o Chega quis transformar em “acordo” uma simples comunicação do PSD, onde, como manda a Constituição, iria viabilizar a eleição de um vice-presidente do Chega. O PS esfregou as mãos de contente e accionou logo o modo “afinal, sempre se entendem”. Entretanto, Aguiar Branco não passou e houve nova votação. Desta vez, com os três grandes fazendo avançar no ringue os respectivos campeões. Novo impasse. Uns não queriam ser vistos a falar com. Outros não devolviam as chamadas. Outros faziam de emplastros, querendo à viva força aparecer no plano da câmara. Sucediam-se os solilóquios, os apartes, as mensagens cruzadas, os coros, vários anticlímaxes. Até se chegar à solução rotativa, bi consular, com Aguiar-Branco e Assis. O enredo pode-se resumir no seguinte diagrama. 1. Ventura queria aparecer na fotografia com Montenegro. Ventura, não podendo aparecer na fotografia com Montenegro, iria capitalizar, não pelo desgaste que faria ao PSD, mas pela vitimização. O que realmente aconteceu: Ventura apareceu na fotografia ao lado de… Ventura. 2. Montenegro achou que não precisava de aparecer na fotografia com ninguém. Os outros que se aproximassem, como numa foto de família. O que realmente aconteceu: não houve foto de grupo, ninguém gritou “cheese” ao mesmo tempo, mas tão só umas fotos de paparazzi mostrando Montenegro e PNS em conciliábulos secretos. 3. PNS não quis nenhuma foto oficial, mas tão só aparecer com Montenegro num retrato informal, assegurando a sua humilhação e marcando posição. O bónus, tal como aconteceu, seria fazer de Velho do Restelo, caso disparasse o alarme de uma foto de noivado entre Montenegro e Ventura. Ou seja, PNS sonhava aparecer na foto como o partisan vigilante contra as maquinações da direita, retirando palco a Montenegro e diminuindo o seu espaço de manobra. O que realmente aconteceu: alguém surpreendeu os dois a jogar à moedinha e a beber umas mines nas traseiras da cantina. 4. Rui Rocha andou por ali, sorrateiro, esperando que alguém o convidasse para o retrato. De caminho, assegurou-se que a IL terá direito ao seu vice. 5. Dos restantes, vale a pena uma breve menção: entretidos no seu campeonato, só uma coisa lhes interessa, o caos.
2. Vejo muita gente a olhar para a poesia como uma liturgia. Um programa de autoajuda. Nada tão longe da verdade. Para quem a escreve, revelando-a, a poesia é um ofício de que não se pode demitir. Uma maldição. Os poetas não são descobridores. São crianças insaciáveis. Tornam-se aquilo que ousam espreitar. Fazem ligações hermética, às claras. Corrompem. Para os que são poetas (não confundir com os que a escrevem), a poesia não tem hora marcada. Não é um artifício que lhes permite escapar da realidade. Mas a senha para essa realidade. O poeta não espera que lhe depositem sonhos trocados aos pés. Vai atrás deles. O poeta chora. Mas seca as lágrimas caminhando. Com ele, não há deslumbramento, mas sobrevivência.
3. O que têm em comum adeptos das teorias da conspiração, leitores de romances históricos light e especialistas em “relatórios” e “estudos” que desvendam “mistérios” e “segredos” obscuros? Para todos eles, a História obedece a um desígnio superior. Um sortilégio. Uma manipulação orquestrada por forças ocultas, organizações secretas, poderes alheios a qualquer escrutínio. De certo modo, é confortável trilhar esse caminho. É mais fácil arranjarmos uma explicação mística – onde o bem e o mal, reais ou fictícios, estão devidamente identificados – do que olhar para a História como um produto do acaso. Um jogo da sorte e do azar. Onde forças colectivas, ou vontades individuais, num dado momento prevalecem, e outras se lhe opõem. Mas não há um guião para isto. É para sermos poupados a esse desamparo que, acredito, as narrativas conspirativas florescem.
4. Um cinismo superior, exclusivo. Feroz no início e delicado no fim. As travessuras da fragilidade, com condimentos especiais. A inquietação do sonhador, de mãos dadas com o cálculo do frívolo. Pois que o cálculo do frívolo, ao contrário da usura do egoísta, é distributivo, ainda que necessariamente injusto. O cínico superior distribui impunemente o prazer, o sangue e a vaidade. Guardando para si a glória de traficar a inteligência e a agilidade. As coisas demasiado humanas para serem trocadas no comércio sonolento da adulação. O cínico é o traficante exímio da execração do moralista pela inocência do libertino. O cínico como um príncipe, sem a púrpura do trono ou do altar. O cinismo como uma filigrana, cuja beleza está no detalhe e só de perto pode ser admirada.
* No calendário vegetal celta, significa “amieiro”
** O autor escreve de acordo com a antiga ortografia