Ngetal*

“Também pode acontecer que a poesia seja um lugar seguro, no meio dos escombros da linguagem. Uma partitura para remediar o caos do mundo. A essência extraída por alquimistas/perfumistas, também chamados poetas. É possível.”

1. Fruto da propaganda e do marketing, há palavras que funcionam como mantras: sustentabilidade, descarbonização, rede, inclusão, etc. Recentemente, tenho visto muita gente a clamar pela paz. Muitas fazem-no como náufragos desesperados, agarrados a uma bóia de salvação. Outros como um argumento arrasador, difícil de contornar, à falta de um rendilhado mais próximo da realidade. Uma coisa é certa: quem não quer a paz? Seria o mesmo que perguntar: quem não quer ser feliz? Ou “quem não gosta de bacalhau com grão?” Evidentemente, a paz é uma condição essencial para o bem-estar das pessoas e das nações. Mas é preciso esmiuçar. Qual paz? A pax romana? A paz perpétua de Kant? A paz do medo, própria da Guerra Fria? A paz justa, enquanto valor supremo do direito internacional? Não sei. Tão importante como a resposta, é perceber que a paz não existe a qualquer custo. Que quem realmente a deseja, deve estar preparado a guerra. Todas as guerras. Sobretudo as que se travam dentro de nós.
2. Cada vez mais se torna visível, no nosso Parlamento, aquilo a que os politólogos chamam o “outsourcing”. Ou seja, a assessoria por actores externos, públicos ou privados, nos processos legislativos. Um fenómeno recorrente no Parlamento Europeu e no Congresso americano, sob a forma de “lobbying” e grupos de pressão. Em Portugal, o processo funciona de dentro para fora. São os vários grupos parlamentares que recorrem a serviços de consultoria externa. Por várias razões: flexibilização, ausência de responsabilização política, legitimação em caso de matérias sensíveis, recurso a conhecimento especializado percepcionado como mais idóneo. Vou dedicar um capítulo ao papel das grandes sociedades de advogados. Que dispõe de deputados eles próprios sócios, para manobrar segundo os seus interesses. No fundo uma distorção do próprio conceito.
3. Uma das medidas socialmente mais injustas previstas no OGE para 2024 é o brutal aumento do IUC para viaturas com mais de 15 anos. A cínica justificação apresentada pelo Governo é serem mais poluentes. Mas a verdade é outra, que aliás Medina não escondeu: resulta de contas de merceeiro, para compensar a diminuição das receitas provocada pela redução das portagens. Ora, são precisamente as pessoas com rendimentos mais baixos que possuem viaturas mais antigas. Por razões óbvias. Muitas delas vivem no interior. E vão ser elas que vão pagar, quer a factura das portagens, quer a demagogia do governo destinada a satisfazer as reivindicações ambientais de urbanitas privilegiados.
4. Na semana passada, Marcelo cometeu duas gaffes sucessivas. A primeira foram as declarações infelizes junto do representante da Autoridade Palestiniana. A segunda foi ter-se insinuado na manifestação pro-palestiniana em frente do Palácio de Belém. A primeira decorre da sua incontinência verbal. A segunda da sua necessidade permanente de ser amado. A afectuosidade de Marcelo é um pau de dois bicos. Assemelha-se a um pastiche decalcado do ideário do Estado Novo. Tal arquitectura revivalista à Raul Lino. Para Marcelo, Portugal é o dos Pequeninos. Onde ele paira como Gulliver sobre Lilliput. Marcelo não se dá conta da sua sobranceria loquaz. Não é um gentleman, como Passos, mas um narciso com epicentro no eixo Lisboa/Cascais. Quando sai desse mundo, é uma espécie de senhor Hulot, em férias pela exótica província. Não para destapar o absurdo, como o personagem de Jacques Tati, mas para disfarçar a condescendência e a soberba com os afamados afectos…
5. Também pode acontecer que a poesia seja um lugar seguro, no meio dos escombros da linguagem. Uma partitura para remediar o caos do mundo. A essência extraída por alquimistas/perfumistas, também chamados poetas. É possível.

* No calendário vegetal celta, significa “junco”
** O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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