Os órfãos do senhor Rústico

Escrito por Fidélia Pissarra

“O senhor Rústico, senhor de grande aparência e pequeno conteúdo, tomara conta daquela cidade, viciada em parir órfãos de tudo e mais alguma coisa, desde o primeiro dia em que ali chegara. “

No dia em que o senhor Rútico tombou, menos por pena do que para confirmar que estava mesmo tombado, toda a cidade quis assistir. Em questão de minutos, exatamente os que levaram a aperceberem-se da multidão que rodeava o ciclo, ainda por fechar, de chorosos, ao ver contrariada a sua, até aí inabalável, opinião acerca das pessoas que sempre consideraram ingratas para com, o agora tombado, os órfãos do senhor Rústico passaram a estupefactos.
O senhor Rústico, senhor de grande aparência e pequeno conteúdo, tomara conta daquela cidade, viciada em parir órfãos de tudo e mais alguma coisa, desde o primeiro dia em que ali chegara. O que, obviamente mais pela qualidade das faculdades que se lhe conheciam do que pela dimensão, lhe angariou muitas e sólidas inimizades. Contudo, nunca o senhor Rústico deixou que tal chegasse a estorvar a persecução dos seus objetivos.
A primeira vez que se deu pelo lado sombrio da existência do senhor Rústico coincidiu com a transferência, anódina, da sua posição para a oposição, feroz, aos próprios correligionários. Ferocidade, imediatamente, aproveitada por meia dúzia de pessoas, de nome e origem iguais aos dele, ansiosas por corrigir a mútua insignificância que tanto os achegava. Vai dai, com o argumento de que a cidade não andava nem desandava, escorraçaram os adversários e atribuíram ao senhor Rústico o comando da rusticidade instaurada. Coisa tão mal vista no centro como bem-vinda pela periferia, mas que, para o caso, pouco importou. Porquanto, acérrimo defensor da iniciativa individual, o senhor Rústico buscara sempre o bafo da sorte junto da reputação dos seus protetores que, de resto, só não estão em altar nenhum por ainda estarem vivos e, mesmo na periferia, ninguém gostar de idolatrar santos que enfermem das mesmas necessidades fisiológicas que o comum mortal. Pertinácia que, em tempos, lhe terá até permitido desfrutar da reputação de venturoso e bom católico ao apregoar aos sete ventos que, se lhe saísse a sorte grande, enrijeceria todas as festas e romarias, da cidade e arredores.
Promessa que, escrupulosamente, cumpriu, assim que lhe saíram duas frações. O que, não sendo grande prémio, sempre deu para expandir as efemérides com que, enquanto pôde, foi dividindo o calendário local.
Contudo, o efeito inicial dava em não perdurar e o que antes encantara tanta gente acabou a todos desgostar. Depois de uns tempos naquilo, deu o senhor Rústico em surgir cada vez mais desaprumado e, à exceção dos apaniguados, quer no centro, quer na periferia, já ninguém aturava tanto foguetório e som de bombos. Saciada a premência da escolha contestatária, restava um ror de pés e fígados cansados a ditar o esvaziamento das festas e arraias.
Reunidos de emergência, todos os candidatos a órfãos seus acabaram a deliberar ser-lhe fiéis até ao fim, como quem diz, ao tombo, e mais além. Só não contavam com que, à primeira escorregadela, todos os outros se sentissem tão vingados que até a esperança, de se reorganizarem em nova congregação, se foi esconder debaixo do tombado senhor Rústico.

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Fidélia Pissarra

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