Espanha é a quarta economia da Europa, um dos países mais desenvolvidos do mundo, o nosso mais importante parceiro comercial, o nosso vizinho cinco vezes maior do que nós, mais rico e com uma diversidade cultural, social e económica extraordinária. Um país encantador, mas de costas para Portugal desde que, em 1640, demos um pontapé no rabo dos Filipes… Mas se desde a Restauração que o caminho dos dois estados ibéricos foi sempre em separado, muitas foram as vezes em que os caminhos se cruzaram ou que as principais decisões espanholas influenciaram as decisões nacionais (e vice-versa, como a atual solução governativa inspirada na “geringonça”). Estranhamente, por inveja ou desdém, os portugueses têm quase sempre uma posição negativa em relação a Espanha (os espanhóis nem se lembram que existimos…). Repetimos muitas vezes que são “nuestros hermanos”, mas logo recordamos que de Espanha “nem bons ventos, nem bons casamentos”…
Aqueles que apreciamos a Europa das regiões, que defendemos o agregar em vez do separar, mas respeitamos a autodeterminação dos povos, que acreditamos na paz e na diferença, no diálogo e nos valores da Revolução francesa, vivemos por estes dias momentos de grande expetativa.
Após as eleições espanholas escrevi aqui que antes do final do ano haveria de novo eleições em Espanha. A vitória do PP não garantia governação à direita (o apoio do VOX não chegava para a maioria absoluta) e não acreditei que a “geringonça” espanhola pudesse repetir-se. Porém, tudo caminha para uma solução diferente e há muito defendida por muitos para Espanha: o Estado Federal. A eleição da presidente do Congresso (parlamento), a socialista Francina Armengol, com o apoio dos independentistas catalães, dos galegos e dos bascos, garantiu uma maioria à esquerda que poderá abrir portas à continuação de Pedro Sánchez à frente do governo espanhol – com a cedência aos nacionalistas de uma velha pretensão: o fim do castelhano (espanhol) como única língua nas intervenções dos deputados e documentos oficiais e a equiparação linguística (línguas oficiais) do castelhano com o catalão, o galego e o euskera no parlamento.
A Espanha castelhana, una, dominadora e castradora que, desde Isabel, a Católica, sempre impediu a expressão da diferença, e que Franco quase aniquilou, regressou com a democracia, com conflitos como o basco ou o catalão, e está mais perto do fim com a promoção da igualdade numa federação. A Espanha de Cervantes, Picasso ou Almodôvar também é a Espanha do galego Camilo José Cela, dos catalães Gaudí ou Dali ou do basco Chillida. Uma Espanha rica pela integração de todos, mesmo que culturalmente e socialmente tão diferentes. E essa será a maior vitória de Sánchez, a construção de um estado federal. E se os que acusam o presidente do Governo espanhol de raptar a democracia em nome do seu interesse de continuar no poder, devem também reconhecer que os povos têm direito à sua afirmação cultural e à autodeterminação (será isso ou a desintegração do Estado espanhol). A Espanha das nações está há muito encerrada e oprimida pela força e só terá futuro com o respeito pelas diferenças. O desenvolvimento de uma Espanha Federal acabará por influenciar o desenvolvimento da Península Ibérica. E, como sempre nos ensinou Eduardo Lourenço, Portugal e Espanha «têm um destino comum» cuja compreensão devemos aprofundar.
É essa Espanha diversa, urbana e moderna, com uma economia pujante, industrialmente desenvolvida e culturalmente rica e diversa, que convive com bases ultraconservadores que subjugam a direita espanhola, bolsas de xenofobia e racismo extremo (ao mesmo tempo que adota a riqueza cultural cigana, com o expoente no flamenco) e vive refém num machismo reacionário inconcebível – de que as “manadas” ou os homicídios de mulheres são apenas o espelho de uma sociedade carregada de contradições. Foi esta Espanha, grande e diversa, que se sagrou campeã mundial de futebol feminino pelo brilho e capacidade das suas atletas, mas, depois da festa, o que fica é a marca machista, tão presente na sociedade, com o inconcebível ato do presidente da federação, Luís Rubiales, que, de forma inapropriada, beijou nos lábios a jogadora Jennifer Hermoso – se fosse um jogador não o teria beijado. A grande Espanha sempre tropeçou nos seus próprios defeitos.
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“Foi esta Espanha, grande e diversa, que se sagrou campeã mundial de futebol feminino pelo brilho e capacidade das suas atletas, mas, depois da festa, o que fica é a marca machista tão presente na sociedade com o inconcebível ato do presidente da federação espanhola, Luís Rubiales, que de forma inapropriada beijou nos lábios a jogadora Jennifer Hermoso”