A classe política portuguesa, autointitulada de elite pensante, uma espécie de tudólogos profissionais, há muito que consagrou a cerimónia de discursos do 25 de Abril, na Assembleia da República, como uma espécie de sacrifício do carneiro, na epistemologia da “palavra” na sua conceção católica, apostólica e romana. Cada personagem interveniente na partitura faz do seu discurso uma espécie de acusação dos pecados, pecados dos outros, evidentemente, e esquece os que cometeu em benefício próprio.
Fala quem tem de falar e os outros politólogos, os da comunicação social, que todos os dias nos invadem as casas com as mais fantabulásticas larachas, têm terreno fértil para se ouvirem a si mesmos e, comentando, levarem-nos a descortinar as teorias e pretensas verdades que o chefe máximo lhes encomendou que difundir. É o mercado a funcionar na sua plenitude. É a lei da oferta e da procura na arena politiqueira a funcionar em perfeita simbiose. O mais hábil dos papagaios arrebatará maior audiência, logo, o segredo está em se saber papaguear, e muito.
Invariavelmente, a cada ano, esta liturgia da pretensa redenção democrática repete-se. Com a procissão de carros topo de gama, que isto de se pertencer à classe dos primatas com estatuto tem as suas vantagens, a chegarem para o culto. E com os ilustres convidados e participantes, sempre, com o cravo vermelho ao peito ou à mão. Uma espécie de trela para que se lembre o quanto o regime implantado beneficiou e beneficia esta elite.
Como diria o professor, doutor e ex-reitor da Universidade de Lisboa, José Barata Moura, «Cravo Vermelho ao peito/A muitos fica bem/Sobretudo faz jeito/A certos filhos da Mãe (..)». E que jeito, mesmo decorridos 49 anos depois da data. Não faltam Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus e Agnus Dei, o “Pai Nosso” e a bênção final! Tudo, mas mesmo tudo, ao ritmo e compasso do cerimonioso ato!
Neste ano da graça de 2023 tudo se repetiria, sempre com o povo em total alheamento de tais andamentos litúrgicos. Mas, e há sempre um mas, uma abelha na chuva introduziu a tal “areia na engrenagem”, a tal que deu num enorme quiproquó. Isso mesmo, confusão, desentendimento, discórdia, distúrbio, equívoco, engano e erro. Marcelo, em dezembro, aquando da tomada de posse de Lula da Silva como presidente do Brasil, sem falar com nenhum deputado, meteu a colher onde não devia e terá sugerido que o novo presidente eleito participasse no ritual da Assembleia da República no dia 25 de Abril. Resta saber se o convite foi apenas e tão só para a presença do convidado ou se também incluía o direito ou dever de discurso.
Nestas coisas que envolvem “escorregadelas” de Marcelo, nomeadamente quando falamos de um convite que só deveria poder ter sido feito pelo presidente do Parlamento, geralmente a comunicação social faz-se esquecida. Faz bem, pois serve-se e serve o homem do balde. Aproveitando a calinada de Marcelo, o sempre bronco ministro Cravinho vem dizer, ainda em Brasília, que Portugal contaria com Lula da Silva nas comemorações do 25 de Abril. Estava encontrado um pretexto para se esquecerem, momentaneamente, todos os problemas sociais e económicos que afligem a maioria dos portugueses! Tudo, mas tudo o que à elite diz respeito passa, mais uma vez, à frente dos problemas do país, por mais duros e difíceis que estes sejam. Bem sei que Cravinho passou por cima da Assembleia dos Representantes, vulgo Assembleia da República. Pois só esta pode decidir os moldes de convites deste género, e nunca o Marcelinho das selfies ou um qualquer ministro.
Claro que até se fazer disto um caso de “lesa pátria” vai uma distância enorme. Essa pátria é, afinal, a fome, a miséria, o desespero que varrem a sociedade. Isso sim, é crime! Que o quiproquó criado vai trazer sérias e graves consequências não se duvide. Já que o remédio de se pretender agora receber o presidente Lula em cerimónia extra comemorações do 25 de Abril não passa de uma forma ardilosa de se escamotear o problema criado pelos tais eunucos da tradição celebreira. Salve-se a comemoração genuína do 25 de Abril, sem espartilhos de qualquer ordem ou feitio, realizada pelo povo, e sobretudo sem insultos à nossa inteligência.
Rituais, convites, palhaços e palhaçadas
“Salve-se a comemoração genuína do 25 de Abril, sem espartilhos de qualquer ordem ou feitio, realizada pelo povo, e sobretudo sem insultos à nossa inteligência.”