São janelas inúmeras que vejo da minha. Um prédio enorme que me tapou a visão. De noite tenho uma montra de vidas. Enche completamente o espaço cénico à minha frente. São luzes de janelas entreabertas, outras de par em par e numas há vermelhos, outras o opaco predomina, e aqui e ali com gente. Gente que fuma na janela. Gente que olha com as portadas abertas. Alguém sacode a toalha do jantar ao estilo da minha avó. Não vejo crimes e não os procuro. Não testemunho violência alguma. Percebo discretas conversas de telemóvel que trazem pessoas às janelas. São luzes aos quadrados. O prédio tem muitos andares e é largo, por isso à minha janela só tenho um quadro de quadrados iluminados. De noite é divertido perceber a mãe que arruma a cozinha. O tipo que vibra com o futebol. Os estudantes de vários andares numa azáfama de conversas e limpezas. Uma nudez distraída pode fazer mais caloroso o quadro, mas é raro. Gostava mais da paisagem antes do prédio, mas agora a noite é mais engraçada. Ontem sonhei como abanava e se desfazia toda aquela vida às quatro da manhã. Um cenário turco que me perturba o sono e se intromete na paz do voyeur. Agora não há mais que escombros e ouço gritos. As notícias distorcem-me o sonho.
O quadro
“De noite é divertido perceber a mãe que arruma a cozinha. O tipo que vibra com o futebol. Os estudantes de vários andares numa azáfama de conversas e limpezas. Uma nudez distraída pode fazer mais caloroso o quadro, mas é raro. “