Manhã submersa

“O Bispo da Guarda tem de renunciar, mas antes tem de pedir desculpa às vítimas, às crianças e adultos que tinha obrigação de proteger”

Os abusos sexuais na Igreja não são um tema de fácil análise, e não pode ser tratado de forma leviana. Mas podemos e devemos falar sobre eles, mesmo correndo o risco de nos enganarmos, de sermos excessivos ou injustos, o que não podemos é calar e contribuir para um silêncio ruidoso, conivente e condenável. As vítimas dos abusos merecem mais, merecem que a sociedade não permita o silenciamento e que se faça justiça. Merecem que os abusadores sejam identificados, acusados, julgados e castigados. E merecem proteção e solidariedade de todos. E desde logo dos que falharam ao longo de anos na sua obrigação de os proteger: a Igreja e o Estado.
Podemos desvalorizar, como o fez o Presidente da República, para quem 400 casos entre milhões de fiéis não são relevantes. E que as queixas de «pessoas de 90 ou 80 anos e que fazem denúncias relativamente ao que sofreram há 60, 70 ou 80 anos», não é «particularmente elevado». Ou olhar para o silêncio de padres e bispos, para a tentativa de silenciamento e encobrimento da Igreja, para a desvalorização de escândalos sucessivos, para o lamentável e vergonhoso abuso perpetrado durantes dezenas de anos sobre crianças que estavam ao cuidado da Igreja, em Portugal e no mundo. Por isso, o Papa Francisco exigiu medidas e ações em relação à pedofilia. Marcelo Rebelo de Sousa escolheu ficar entre o céu e o inferno, como se um caso não bastasse para haver crime, como se um caso não tivesse significado sofrimento e como se um só caso não exigisse à Igreja a expurgação da pedofilia. E como se o sofrimento suportado durante anos, escondido e reprimido, não pudesse ser exprimido e denunciado muitos anos depois do abuso praticado – quanto sofreram aqueles que foram abusados na infância, quantos choraram sozinhos, quantos sentiram as sombras durante anos pelo ataque sórdido que padeceram e tiveram de esconder toda a vida? Marcelo acabou a pedir desculpa, sem conseguir expiar o seu pecado, sem exigir justiça terrena para com os predadores e pederastas, com os encobridores e cúmplices de tão repugnante crime.
E estávamos todos perplexos com a insensatez comentadora de Marcelo quando, de novo, o Bispo da Guarda aparece por entre o turbilhão dos comentários sobre os abusos sexuais na Igreja. Manuel Felício, depois de ter escondido e apoiado o padre Luís Miguel, que era vice-reitor do Seminário Menor do Fundão, que foi denunciado, acusado e condenado por abusar sexualmente de crianças que estavam ao seu cuidado (e da Diocese da Guarda), volta a ser referido, no passado dia 20, pelo “Observador”, por manter «à frente de várias paróquias um padre que está a ser investigado» (é um dos quatro inquéritos abertos pelo Ministério Público) por abusos sexuais de menores – segundo aquele jornal, «este padre tem a seu cargo vários serviços que lidam com crianças». O Bispo da Guarda defendeu-se esclarecendo que «sempre comunicou a quem de direito todas as denúncias que lhe chegaram» (em comunicado das Relações Públicas da Diocese da Guarda) e que «em caso algum, deseja contribuir para transformar qualquer notícia, declaração ou até acusação sem investigação, em condenação direta e sumária na praça pública». Compreende-se. Porém, o Bispo da Guarda, enquanto decorre a investigação, deveria ter suspendido o sacerdote. Mais uma vez Manuel Felício decide erradamente. Mais uma vez não interpreta corretamente as palavras do Papa Francisco, não percebe o contexto social e as exigências da sociedade. Ao Bispo da Guarda já não basta informar a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja Católica Portuguesa ou a Procuradoria-Geral da República, o Bispo da Guarda tem de atuar em conformidade, tem de suspender o sacerdote e contribuir para toda a clarificação sobre os eventuais abusos, tem de proteger as crianças e assim proteger a própria instituição. Ao Bispo da Guarda já não basta remeter para quem de direito as denúncias ou informações de que tenha conhecimento; ao Bispo da Guarda já nem basta anunciar que vai renunciar, até 6 de novembro, dia em que comemora os 75 anos e tem de apresentar pedido formal de dispensa das responsabilidades de Bispo diocesano de acordo com o Código de Direito Canónico. O Bispo da Guarda tem de renunciar, mas antes tem de pedir desculpa às vítimas, às crianças e adultos que tinha obrigação de proteger, aos crentes que confiaram nele ao longo de 17 anos e a todos os que na Diocese da Guarda acreditaram na sua palavra.

Sobre o autor

Luís Baptista-Martins

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