Nem sei como lhe chamar

Escrito por Fidélia Pissarra

“É outono e, o outono, costuma ser brando com os alentejanos. Aliás, mesmo que convidasse, a visita a um Carmelo também não seria opção. “

Numa cidade espanhola, o calor do dia convidava à entrada na igreja de pedra fresca. À entrada, um aviso pedia silêncio e respeito pelo culto, lá dentro meia dúzia de mulheres, todas com aparência de mais de meio século, respondia, orando, às orações inacabadas de uma voz sem rosto. Era uma missa sem padre. Uma voz masculina, supostamente de um sacerdote, saía do sistema de som pousado em cima do altar. Quem entrasse para fugir do calor e fotografar as pedras do lado de dentro do edifico, podia assim confirmar a crise gerada pela ausência de vocação católica: não há padres que cheguem para tanta missa. Naquela igreja, resolveram o assunto da falta de padres com a gravação de uma homília qualquer e o culto pode continuar para as meias dúzias de crentes que ali se juntam. Ninguém se revoltou contra bispo nenhum, nem, em última estância, contra o Papa. Também não houve contestações, ao governo da cidade ou da nação, por algo de que ninguém é culpado a não ser talvez os próprios, naquele caso as próprias, por não terem tido mais filhos ou, pelo menos, filhos com vocação suficiente para se dedicarem ao sacerdócio.
Numa cidade alentejana, o calor do dia não é suficiente para convidar à entrada em algum sítio específico. É outono e, o outono, costuma ser brando com os alentejanos. Aliás, mesmo que convidasse, a visita a um Carmelo também não seria opção. Porque, como toda a gente sabe, para além de os Carmelos não serem visitáveis, também já não há muitos. O mesmo fenómeno que está a levar à extinção dos padres estará a extinguir as freiras: não há quem, no feminino, queira seguir a carreira de rezar. Problema tanto maior, quanto, ao contrário dos padres que dizem a missa, mais difícil seja substituir a presença das freiras no convento por uma reprodução automática das rezas silenciosas delas. Dificuldade que leva já o povo de meio Alentejo a manifestar-se contra tudo e contra todos por tudo quanto é lado. Na cabeça deles, as duas últimas freiras do Carmelo de Beja, só para o dito permanecer ativo, deveriam, precisamente, mantê-lo ativo. Desde que o convento não se extinga, pouco lhes importa que as boas das freiras estejam velhas e, possivelmente, amedrontadas pelo isolamento e solidão. Tal como pouco lhes importará que não haja freiras que as substituam e olhem por elas na velhice. O bispo, o Papa, o governo da cidade, da nação que lhes resolvam o problema, de qualquer maneira, ou eles fazem e acontecem.
Ora, antes que eles façam e aconteçam, na impossibilidade de “formar” carmelitas em tempo útil, para além de fazer rodar as carmelitas pelos conventos todos durante o ano, pouco mais haverá a fazer. A não ser… talvez preencher as celas das freiras com hologramas das poucas que restam por essa Europa fora. Claro que as freiras verdadeiras terão de ir para onde haja quem cuide delas, mas as outras, as virtuais, podem muito bem fazer delas. Ao fim e ao cabo, se já pode haver missa sem padre, porque é que não há de poder haver conventos sem freiras? Provavelmente, aos alentejanos pouca diferença faria e sempre ficavam menos revoltados.

Sobre o autor

Fidélia Pissarra

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