Ontem, no entardecer quieto da paisagem, o choro da terra, diluído na respiração bovina de cor macia e fraudulenta, rasgava o céu em dois. Um vulto, de machado pendido na mão, ignorando terra, choro e céu, vertia gananciosamente o olhar sobre o horizonte. Por cima da sua cabeça, grandes, majestáticas, planavam águias claudicantes. Seguravam linhas douradas, enfiadas em agulhas de bordadeira, nos bicos aduncos. Escarçado, a cada bicada por trás das agulhas, o céu emudeceu. Arrefece a terra na sombra do machado, na mão do homem de olhar invejoso na paisagem, erguido entre o sol e a terra. De tão nublada, a tarde faleceu. O Jardim Alexandre ficou vazio, parado, tranquilo. A chuva miudinha tentou transformar-se em neve, mas não tinha força suficiente, e desceu silenciosamente pelos caminhos escorregadios do jardim, olhando tanto na direção da praça, que parecia ainda mais escura sob um céu baixo e cinzento, como em direção ao Jardim de Cobre, onde uma grua ia removendo as camadas superiores da caixa de restauração. Os sons dos sinos a troar, justamente no momento em que morri no café da Felicidade a caminho de casa, sobressaltaram os que viravam a esquina, pairando no ar por muito tempo, como se entrando no ADN da chuva, fundindo-se com ela, pudessem provocar levemente o céu. Eu já tinha feito o meu caminho ao longo dos caminhos molhados e gelados até ao cais do Almirantado e a chuva, descendo suavemente no meu guarda-chuva rosa, fazia lembrar os sons dos sinos. No mar, alheios à cadência dos sons dos sinos e da chuva, os navios titubeantes afundavam-se. No topo dos escolhos o vento, muito vento, arrancava os galhos cansados de lutar com ele para os dispersar arbitrariamente. Na paisagem, que agora a noite encobre, só o reflexo frio da lua, no aço do machado erguido pela mão do vulto, deixa ver os flocos de neve que rapidamente se agacham sob os troncos amputados.
Ontem a tempestade alastrou, tirou-nos o café das mãos e trancou-nos em casa como um déspota caprichoso e instável. No jardim, na praça, nas ruas desertas que desembocam no cais do Almirantado ecoava apenas o fúnebre murmúrio dos sinos que o ribombar dos clarões das bombas, a cair, faziam oscilar. Na paisagem, invejada pelo vulto do machado em riste, a terra chorava os soldados que, com os seus “smartphones”, filmavam a morte. Dos outros e a própria. Como se filmassem o duelo de Pushkin. Ontem, os sinos ressoavam com tanta força que o meu guarda-chuva rosa, já pousado à direita da porta, estremecia. Eu chorava. Da praça, o velho leão de pedra com a cabeça tombada e o rosto cansado, sábio, responde ao meu desespero levantando um pouco os cantos da boca. Ligeiramente reconfortada, por detrás das lágrimas que escorrem pelo vidro da janela, na minha sala, continuava à espera que o sol, ainda escondido atrás das nuvens arroxeadas, saísse para vir desenhar, na areia da costa, as formas coloridas com que o céu tanto gosta de curar as suas feridas, nas manhãs de Inverno.
Ontem, os sinos
“Ontem a tempestade alastrou, tirou-nos o café das mãos e trancou-nos em casa como um déspota caprichoso e instável.”