“Vêm aí os russos”

“A invasão da Ucrânia foi um murro no estômago em todos os que acreditávamos no diálogo e na paz”

Há pouco mais de uma semana o anúncio de uma eventual invasão da Ucrânia pela Rússia mais parecia propaganda para desviar as atenções da política interna americana e inglesa do que uma probabilidade efetiva. Biden, com a popularidade em baixa e em ano de eleições intercalares para o Congresso, via como os Democratas estavam à beira de uma pesada derrota; Boris era acossado pelas festas em Downing Street que poderiam ditar a sua demissão.
Ninguém acreditava seriamente que o déspota Putin se atrevesse a iniciar uma guerra. Por isso, por cada anúncio de movimento militar, por cada reportagem sobre a presença de mais tropas russas na região fronteiriça ucraniana, apreensivos e receosos, preferíamos acreditar que era a política a falar e não a loucura belicista de um ditador. E recordávamos o filme de Norman Jewison, quando um submarino soviético atraca na Nova Inglaterra e os tripulantes, que só querem ir para terra, chegam às praias de Massachussets sem se aperceberem do pânico criado, pois apesar das intenções inofensivas dos russos, os habitantes pensam que é uma invasão em grande escala, o início da terceira guerra mundial. “Vêm aí os russos” passou a ser uma representação, um ícone cinematográfico, para relativizar ameaças militares de guerra. Até quinta-feira, dia 24 de fevereiro de 2022…
A invasão da Ucrânia foi um murro no estômago em todos os que acreditávamos no diálogo e na paz, e nos lembra a inconstância da vida das nações.
Há duas notas determinantes para interpretamos a tragédia ucraniana: a intenção da Ucrânia aderir à NATO e a desmilitarização da Europa. E duas surpresas: a reação (ucraniana e da Europa) e a Alemanha.
Qualquer pessoa atenta à “realpolitik” do leste europeu sabia que a Federação Russa não aceitaria a vontade ucraniana de entrar para a NATO. E reagiria em conformidade. A Rússia fez uma invasão em grande escala, um ataque massivo, com meios destruidores que adivinhavam um domínio rápido e a implosão imediata de um dos maiores estados da Europa.
No seguimento da segunda grande guerra, a Europa escolheu o caminho da paz e trabalhou para isso. As nações aproximaram-se, nasceu a União Europeia que, com sucesso, foi integrando a maioria dos estados e assegurou o maior período de paz e crescimento da Europa. Essa pacificação passou pela desmilitarização e a entrega da “defesa” da paz aos americanos (e aos ingleses, que são o único país europeu com um exército digno desse nome). A NATO passou a ser o chapéu que a Europa paga para evitar conflitos. Os europeus podem manifestar-se contra as armas e a guerra, sem ter de pôr os pés em campo de batalha. As novas gerações acreditaram na felicidade e na paz como um dado adquirido. Mas não são. E o povo ucraniano dá-nos essa extraordinária lição, lutar pelo seu país, escolher entre a morte ou a liberdade e a democracia. Liderado pelo humorista Zelensky, o povo resiste heroicamente, grita pela paz respondendo à violência com violência.
Como bem explicou o filósofo José Gil, «o conflito da Ucrânia mostra que só a ameaça da força se revela efetiva contra a violência bruta» pois «quando o adversário se transforma em inimigo, violando violentamente a lei e a paz internacionais, ou quando age contra o Estado de direito, recorrer à força torna-se um reflexo de sobrevivência». E no seguimento desta perceção, a Europa depois de anos a dormir sobre a felicidade e a paz, descobriu a sua incapacidade de reagir com força à força. Enquanto José Gil conclui que «parece claro que não se combate a violência dos autocratas e da extrema-direita neofascista com discursos e debates», a Europa reagiu, assumiu que tem de estar com o povo ucraniano (e, erradamente, declara que a Ucrânia poderá entrar já para a União europeia – não pode, terá de haver primeiro o cumprimento de um conjunto de procedimentos e a implementação de medidas). E, num discurso de 20 minutos, dia 25 de fevereiro, Olaf Scholz, o novo chanceler alemão, provocou uma revolução na defesa alemã e europeia. Foi o fim da “inatividade” alemã. Scholz anunciou a aprovação de fornecimento de armas à Ucrânia, pondo fim a um tabu alemão, e aprovou uma verba de 100 mil milhões de euros destinados a investimento militar. O investimento no crescimento e no bem-estar vai dar lugar ao investimento em segurança.
Enquanto o povo ucraniano dá uma lição ao mundo, lutando pela sua sobrevivência e autodeterminação, a guerra de Putin vai mudar o mundo. Kiev pode cair, a morte e as lágrimas, o sofrimento e tristeza vão dominar-nos. Mas, no fim, a Rússia vai ficar sozinha e mais pobre; Putin vai pagar caro o atrevimento de ter escolhido a guerra.

Sobre o autor

Luís Baptista-Martins

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