Cautela

Escrito por Diogo Cabrita

“Ler muitos livros é como ver muitos filmes ou documentários. Há sempre esquecimentos que nos permitem seguir o déjà-vu com surpresa.”

Muito do que se aprende dos livros debate-se com o problema da memória. A capacidade de reter informação parece finita, muito emocional em alguns, muito obsessiva noutros, absolutamente diletante em muitos. A informação pode estar focada numa ideia ou numa profissão. A memória cai num depósito pantanoso que acarreta confabulações, acrescentos criativos da história e por isso é frequente que “quem conta um conto acrescenta um ponto”.
Há também a necessidade de embelezar a recordação porque algumas são tristes, outras chocantes, e frequentemente envergonham. O problema está na construção da personalidade e na montagem da estrutura do pensamento que se vai elaborando com exposição, conhecimento e depois relação. Ler muitos livros é como ver muitos filmes ou documentários. Há sempre esquecimentos que nos permitem seguir o déjà-vu com surpresa. O estudante sofre porque esquece. O médico gostava de lembrar tudo o que leu. Somos facilmente traídos pela memória e pelo modo como descrevemos os factos. A criatividade é uma característica que afeta a recordação dando-lhe cor e subtilezas. Mudamos a memória com o tempo. Nunca viste ódios que terminam em amores? Nunca testemunhou amores que acabaram em tribunais severos? Tudo isso são apagadores de lembranças. Os que se amavam não se podem envolver em disputas e em selváticas atrocidades que prejudicam terceiros, a não ser que limpem a memória, que a lavem com escovilhões e permitam a barbaridade criativa, a indomável demência das trevas invadir o pantanoso lugar das recordações. Cautela com a desconfiança, varre lembranças. Cuidado com o ciúme que destrói os pilares. A leitura persistente e diversificada é um arado da personalidade, mas o cimento da sabedoria debate-se com o esquecimento. Era ótimo preservar os conteúdos das múltiplas vivências, persistir com o sabor dos que nos aumentam e dos textos e imagens que nos engrandecem, mas não é assim.

Sobre o autor

Diogo Cabrita

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