Frimário

“Algo que escapa à visão simplista do marxismo de uma estratificação em classes em função da apropriação dos meios de produção.”

1. A mobilidade social precisa de estímulos. De mecanismos que reforcem o prestígio de certas actividades e estatutos. Que recomponham uma estratificação social baseada em factores complexos, de acordo com a classificação de Durkheim. Algo que escapa à visão simplista do marxismo de uma estratificação em classes em função da apropriação dos meios de produção. Só que essa mobilidade não é linear, nem vertical ou unidimensional. Uma sociedade plural e aberta requer o esbatimento dos factores ideológicos que a podem corroer, como a desvalorização de certos trabalhos, sectores, profissões, grupos, ou geografias, em função do preconceito, da arrogância e do fechamento em castas. Uma solução para reforçar uma mobilidade horizontal, operativa, despojada, enriquecedora, seria a seguinte: poderem os que exercem actividades mais qualificadas e complexas trabalhar de forma sazonal em actividades mais simples, mais exigentes fisicamente, de preferência ao ar livre, maxime no sector da agricultura. E vice-versa. Seria uma forma de fazer descansar a mente enquanto o corpo faz a sua parte. De todos aprenderem a dar valor ao que muitas vezes desprezam ou ignoram. Aqui fica a dica para um programa eleitoral de um partido, daqui a vinte anos.
2. Durante a dominação filipina, a aristocracia não colaborante refugiou-se nas suas terras da província, longe dos olhares e, sobretudo, dos ouvidos dos ocupantes. Um êxodo de parte das elites da Nação, que tornou possível uma vitalidade surpreendente nas comunidades rurais envolventes, ou a construção de muitos solares que ainda hoje podem ser admirados. Mas a semiclandestinidade e a proximidade com o país profundo funcionaram como uma espécie de incubação da criação artística e do vigor espiritual. O célebre “Corte na aldeia”, de Francisco Rodrigues Lobo, é disso testemunha. Salvaguardadas as devidas distâncias, a perspectiva de um governo sem legitimidade e do empobrecimento da vida pública é a oportunidade de oiro para o que realmente interessa: ir atrás dos sonhos mais caros, com um fôlego redobrado e a inspiração da natureza e dos clássicos…
3. Saramago, um escritor menor, faria há dias 99 anos. Um escritor menor é aquele que faz passar ideologia como literatura. Não consegue tornar verosímil o pesadelo. Não se consegue apagar diante do que escreve. Passemos agora a um escritor maior: Dostoievski. Fez agora 200 anos do seu nascimento. Um génio que se tornou a consciência do absurdo de uma liberdade que tudo relativiza. As suas premonições e o seu estilo frenético e misterioso, alheios à tradição do romance europeu, demoraram algum tempo a ser descobertos e compreendidos no mundo ocidental. Nietzsche descobriu os “Cadernos do subterrâneo”, em 1880, numa livraria em Nice, numa péssima adaptação francesa e percebeu a mensagem. Muito antes dos expressionistas e existencialistas se terem apropriado do seu legado. Li e reli a sua obra completa. Incluindo ensaios exaltando uma espécie de pan-eslavismo ortodoxo. Tamanho desconcerto minucioso, por vezes contraditório e irresolúvel, em contraponto com o seu tempo, impressionou-me quando o li e ficou para sempre. Porque as perguntas essenciais subsistem.
4. “Sou frágil, mas não sou fraca”, declarou a fadista Ana Moura. O Jorge Palma esteve mais perto da verdade, quando confessava sentir-se frágil. Porque nós estamos isto ou aquilo, mas não somos isto ou aquilo. A fragilidade visita-nos. Com ou sem convite. Acabada a festa e apagadas as velas, sai. E ainda bem. Para entendermos a nossa condição, precisamos dessas visitas. A fraqueza é outro assunto. Porventura um juízo moral. Não confundamos as coisas. Ser fraco também é não ser capaz de reconhecer a fragilidade, quando vem ter connosco.
5. Bem sei que é mais fácil ir atrás do ar do tempo. Juntarmo-nos à manada. Pouparmo-nos a uma terrível e humana intensidade. Buscar o consolo dos catecismos. Confundir militância com convicção. Ser firmemente avançado e progressista em público, mas preso às convenções e aos ademanes burgueses em privado. Mais fácil e mais seguro. Podia ser diferente? Absolutamente. Mas não era tão divertido.

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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