Frutidor

“O marketing político ainda vive prisioneiro de eufemismos, metáforas, hipérboles, desejo mágico, wishfull thinking, convenções retóricas avulsas, que já Eça e Ramalho desmontavam em “As Farpas”.”

1. No final, tudo se reconduz à triste realidade: as autarquias locais gerem a fatia do OGE que lhes cabe – em média, cerca de 15% – mais as receitas próprias. Em muitos países da UE, essas percentagens podem duplicar. Mas é preciso ir atrás. Perceber que há vários modelos de poder local. Em alguns, as entidades subnacionais locais “competem” com entidades regionais. Algumas mais fracas – caso dos departement em França -, ou politicamente determinantes – caso dos Lander alemães. Também há sistemas em que os órgãos do poder local se limitam a prestar serviços e executar políticas definidas pelo poder central, em regime de concorrência entre si. É o caso do Reino Unido, onde o sistema político de feição parlamentar, com escrutínio uninominal maioritário, como que esgota a representação nos respectivos círculos eleitorais, com prejuízo da administração local. Razão porque é geralmente desconsiderada pelas elites políticas e os próprios directórios partidários. Em Portugal, a originalidade são os baixos orçamentos, a relativa importância política dos resultados, num sistema partidário propenso à cartelização, a governação facilitada com a criação de executivos camarários liderados a partir de maiorias relativas e a ausência de uma tutela forte, que previna a corrupção e a gestão danosa.

2. Qual o elemento que melhor poderá distinguir Portugal antes e depois do 25 de Abril? A liberdade? A democracia? O desenvolvimento? A justiça social? Que ideia! É a diferente modulação das palavras ao longo de uma oração, no discurso público. No Estado Novo, a acentuação tónica recaía sempre no meio das frases para depois decair no fim, num atonismo moribundo. Graficamente, teríamos uma curva, com o seu nível mais alto no meio. Pelo contrário, durante o PREC, as frases acabavam sempre em alta, forçando as sílabas tónicas até aos seus limites. Graficamente, teríamos uma progressão com oscilações até à parte final, onde a subida seria vertiginosa. E o que tem isto a ver com a política? Perguntam os leitores. Observem um documentário propagandístico dos anos 40 e depois um comício ou uma reportagem engagé de 1974 ou 75. Notem as diferenças. No tempo de Salazar prevalecia o culto da autoridade, da hierarquia, da narrativa oficial inquestionável. O discurso era pautado pela submissão a essa narrativa. Por isso, o auge da entoação era a meio e nunca no fim, pois não se podia correr o risco de ser demasiado afirmativo. Uma afronta à autoridade divina e secular. Era preferível ser sibilino, recatado. Centrar os florilégios retóricos e os adjectivos incandescentes no meio e acabar com secos e neutros substantivos. Uma modulação oratória muito comum no discurso clerical, certamente modelo daquele. Ou seja, era permitido abusar nos encómios, mas obrigatório estancar sempre qualquer alusão mais imperativa, a finale. No pós 25 de Abril, a palavra passou a ser, justamente, uma arma. Como antes, o verbo continuou a ser o elemento fundador da realidade política. Só que agora, por imperativo ideológico, o verbo é um instrumento para transformar o mundo e não para o esconder. A ênfase está, pois, na acção, na mobilização, no colectivo. As palavras continuam presas fáceis do não registo. Mas é a linguagem que muda. Fazer a revolução não é pêra doce. Não pode haver dúvidas, ou hesitações. As frases têm que acabar de forma impositiva. Viril. Pautando a marcha da História. Chega de adjectivos ubíquos e venham os verbos e as interjeições!
3. O marketing político ainda vive prisioneiro de eufemismos, metáforas, hipérboles, desejo mágico, wishfull thinking, convenções retóricas avulsas, que já Eça e Ramalho desmontavam em “As Farpas”. Sobretudo em eleições autárquicas, os aderentes e apoiantes das várias listas raramente dão o seu nome, ou o seu apoio de forma desinteressada, por diletantismo, ou afirmação ideológica. Os estrategas e líderes das várias listas sabem-no muito bem. Por isso, enfatizam os grandes propósitos, as frases ocas, a crença messiânica, a língua de pau. As declarações de adesão são equivalentes às dos consumidores radiantes e satisfeitos num anúncio do Continente. Mas se na publicidade se entende o artifício, na comunicação política já não. Quando apoiam X ou Y, as pessoas podiam perfeitamente dizer: “o/a candidato/a é teso/a”; “compuseram o caminho até à minha casa”; “fizeram melhoramentos nas ruas do bairro”; “a ver se estes são melhores”; “a que vai em terceiro é minha prima”; “quero garantir o meu emprego/licença/adjudicação”; “gosto de ficar nas fotografias”; “é tempo de mudar de figurantes”; “o candidato fala bem!”; “a ver se me dão emprego”, etc. Mas ninguém vai por esse caminho. Que seria bem mais honesto, realista e eficaz. É certo que, na política, a verdade queima. Mas a ocultação já deixou de ser rentável.
4. O engenho português é adaptativo. Chama-se desenrascanço e está associado a um tipo de herói popular: o “jeitoso”. O engenho anglo-saxónico é utilitarista e intrépido. Chama-se mecânica aplicada e está ligado a um tipo preciso: o inventor-empreendedor. O engenho alemão é revolucionário, mas a pensar na durabilidade. Chama-se investigação industrial e tem como figura principal o inventor-empresário. O engenho “de leste” é emulativo. Reconstrói, repara e, nalguns casos, é incrivelmente eficaz. A sua figura mais carismática é o “canalizador polaco”. Por último, o engenho francês é selectivo, sofisticado. Não se chama razão, mas é conduzido por ela como um cego. Poderia ser representado tanto pelo desenhador de jardins etéreos, como pelo criador da guilhotina.

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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