Não sei se já vos aconteceu, mas se há coisa que pode (dependendo dos dias e do humor com que se acorda) tornar-se divertida é ser-se atendido por um funcionário que, para funcionar, assume na íntegra o papel de que o revestiram. Normalmente, estes aspirantes a máquinas dispensadoras de produtos e serviços debitam de rajada e em tons metalizados o reportório inscrito no manual do funcionário: vai desejar mais alguma coisa? são dois euros e noventa e cinco cêntimos, por favor. Exatamente por esta ordem e quase que sem entoação de pergunta, não vá dar-nos para lhe solicitar mais qualquer coisa, atrasando-lhes a produtividade, intimidam-nos a despachar o assunto antes que se avariem e desatem a disparar parafusos em todas as direções. Possibilidade que nos apressa e a desejar que a informação instruída das embalagens ajude a resolver qualquer coisinha.
Conquanto isto nos possa divertir, no ato de comprar rebuçados por exemplo, e nunca numa ida ao médico, às Finanças ou ao Tribunal. Nestes casos, espera-se ser atendido por um não funcionário, alguém que se não limite a interpretar papéis programados em manuais de atendimento automatizado. Ninguém, por exemplo, se imagina a ser observado por uma médica mais preocupada com o verniz das unhas ou com o tom certo de voz certo, pois não? Nem ninguém conceberá ver os seus impostos obliterados por um qualquer inadvertido funcionário e muito menos condenado por não ter juízo condizente com o Código Civil. Tudo coisas indesejáveis, mas que indesejavelmente podem acontecer e todos sabem que sim.
O que não se percebe é por que razão quanto mais autónomos é suposto que sejam os funcionários, menos discutidos são os seus atos. Não fora por isso, perguntaríamos que senso tem quem aplica penas mais pensadas para a geografia urbana da capital, aquela que tem uma esquadra de polícia a cada quilómetro habitado e autocarros para lá, de 5 em 5 minutos, do que para a geografia do país rural que tem uma esquadra de polícia na sede do concelho e nenhum autocarro que para lá vá. É que a menos que seja medievo, o tal senso, só pode ser poucochinho ou de quem não tenta perceber o que significa viver nos quintos. Viver longe de tudo e de todos, incluindo do juízo que, ao que se saiba, ainda não nasce com as ervas do campo.
Claro que depois dá nestes casos de qualquer destrambelhado se poder ver triplamente condenado: uma vez por ter nascido no degredo da paisagem pedregosa, outra por aí ter ficado esquecido e uma última por se ter lembrado de se aproximar da cidade pelos seus ângulos mais obtusos. Sim, porque é de terceira pena e mundo que se condene alguém a caminhar por cerca de quatro horas para se apresentar diariamente na esquadra de polícia da área de residência. Mas, pronto, seja com mais ou menos autonomia, talvez respaldada apenas por um ordenado de centenas ou por um “vencimento” de milhares, um funcionário será sempre um funcionário. Pelo menos, enquanto ninguém se der ao trabalho de, à luz de qualquer coisa além do diploma, questionar o seu modo de funcionamento.
Às vezes, a Justiça é meio vesga
O que não se percebe é por que razão quanto mais autónomos é suposto que sejam os funcionários, menos discutidos são os seus atos.