Ventos, sonhos, utopias e liberdades

Escrito por Jorge Noutel

“Socorro-me da poesia que nas palavras de Aristóteles é «o impulso do espírito humano para criar algo a partir de imaginação e dos sentimentos».”

Neste mês comemora-se o Dia da Liberdade. E já se consumiram 50 anos! Tempo mais que suficiente para se fazer a História dos acontecimentos. É dever dos que viveram aqueles dias contar às gerações mais novas, que só conhecem a data e os feitos e efeitos daquele dia pelo livresco e por análises às vezes enviesadas ou deturpadoras dos acontecimentos, a realidade vivida e sentida naqueles tempos. Sim, não houve apenas e tão-só a utopia espalhada pelas ruas, praças, cidades e pelos lugares mais recônditos e esquecidos de Portugal. Houve muito mais. Houve a participação espontânea de milhares e milhares de cidadãos na vida cívica da sua terra, no seu posto de trabalho, na construção da verdadeira liberdade. Liberdade de pensar e de sonhar!
Socorro-me da poesia que nas palavras de Aristóteles é «o impulso do espírito humano para criar algo a partir de imaginação e dos sentimentos».
Manuel Alegre bem que nos falou da “Explicação do país do Abril”: «Não procurem nos livros que não vem nos livros/ País de Abril fica no ventre das manhãs, fica na mágoa de o sabermos tão presente que nos torna doentes a sua ausência/ País de Abril tem gente que não sabe os avisos secretos do poema. Por isso é que o poema aprende a voz dos ventos para falar aos homens do País de Abril».
Não procurem nos livros o que foi a Liberdade vivida e sentida naqueles dias. Bem lembrada nas palavras do Sérgio Godinho «Viemos com o peso do passado e da semente/esperar tantos anos torna tudo mais urgente/e a sede da espera só se estanca na torrente/Vivemos tantos anos a viver pela calada/só se pode querer tudo quando não se teve nada/ só se quer a vida cheia quem teve a vida parada. Só há liberdade a sério quando houver/ a paz o pão/ habitação/ saúde educação/ só há liberdade a sério quando houver liberdade de mudar e decidir/quando pertencer ao povo o que o povo produzir».
Sim, a utopia. Recordando José Fanha, em “O Tempo Azul”, «Havia uma lua de prata e sangue em cada mão/ Era Abril./Havia um vento que empurrava o nosso olhar e um momento de água clara a escorrer pelo rosto das mães cansadas/ Era Abril que descia aos tropeções pelas ladeiras da cidade». E «desceu aos tropeções» durou o tempo que os donos das nossas vidas quiseram que durasse.
Segundo a historiadora e investigadora Raquel Varela, «A revolução portuguesa, que se sucedeu ao 25 de Abril de 1974, e durou sensivelmente quase dois anos a fio, foi o período, não só, mais extensamente revolucionário, como mais profundamente democrático da história de Portugal. A democracia substancial – muito mais do que a democracia procedimental das urnas eleitorais – ensinou-nos que há outro modo possível de vida e trabalho, em cooperação, solidariedade e liberdade. Cerca de 3 milhões de pessoas terão estado envolvidas em formas de democracia participativa na vida social e política em Portugal entre 1974 e 1975». A democracia, nos termos em que se consolidou em Portugal, foi o resultado da luta de classes, da revolução e da contrarrevolução. Houve de facto duas ruturas em Portugal entre 1974 e 1976: passou-se do regime fascista para um período revolucionário, que, aliás, se pode dividir em dois subtipos, um essencialmente democrático até 11 de março de 1975 e outro de disputa objetivamente socialista a partir dessa data, e desse para outro democrático liberal, que se começa a formar a partir de novembro de 1975.
O novo nasce do velho.
E fica a poesia de Jorge de Sena como que a lembrarmos que se os três desígnios iniciais do Movimento das Forças Armadas de 25 de Abril de 1974, Descolonizar, Democratizar e Desenvolver se cumpriram, em parte, por trancos e barrancos, com desvios e sujeições a poderes e forças obscuras, é urgente lembrar que: «Não hei de morrer sem conhecer a cor da Liberdade/ Eu não posso senão ser desta terra que nasci./ Embora ao mundo pertença/ e sempre a verdade vença/qual será ser livre aqui/ não hei de morrer sem saber./ Trocaram tudo em maldade/ é quase um crime viver./ Mas, embora escondam tudo/ e me queiram cego e mudo/ não hei de morrer sem saber/ a cor da liberdade».
Liberdade de ser, de estar, de saber e de fazer!

Sobre o autor

Jorge Noutel

Leave a Reply