A 11 de abril de 1933, Óscar Carmona e Salazar assinavam e faziam publicar o Decreto-Lei 22469, que regulamentava a censura prévia às publicações gráficas. Passados 88 (oitenta e oito) anos, a compasso de uma diretiva europeia, os representantes dos portugueses aprovam uma “Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital”, da autoria do deputado José Magalhães, que se serve da diretiva europeia e, espanto dos espantos, acrescenta-lhe mais um articulado de perigosa aplicação.
O artigo 6º atribui à Entidade Reguladora para a Comunicação Social o poder de aplicar sanções a quem reproduzir ou difundir «desinformação» na Internet, isto é, «narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos». Prevê-se ainda a existência de estruturas de verificação da veracidade daquelas «narrativas» por órgãos de comunicação social e a atribuição de «selos de qualidade» por entidades fidedignas, tudo apoiado e certificado pelo Estado.
Qualquer semelhança entre o que o senhor deputado José Magalhães verteu na tal “cartilha” e o que Salazar impunha naquele famigerado decreto-lei de 11 de abril de 1933 é uma manhosa e ardilosa forma de transcrever o articulado. Atente-se no artigo 3º do Decreto-Lei do ditador: «A censura terá somente por fim a perversão da opinião pública na sua função de força social e deverá ser exercida por forma a defendê-la de todos os factores que a desorientem contra a verdade, a justiça, a moral, a boa administração e o bem comum, e a evitar que sejam atacados os princípios fundamentais da organização da sociedade».
Existe de facto na “nova” cartilha uma nuance que não se pode nem deve perder de vista. A “Carta” traz consigo uma inovação que à data de 1933 era difícil de imaginar: a Internet. O que o senhor deputado Magalhães quis fazer, ao abrigo de uma diretiva europeia, foi ceder ao “lobby” da imprensa e atacar ferozmente todos os comentários que se vão publicando na Internet. As redes sociais são para o “lobby” da comunicação os grandes culpados da situação financeira catastrófica que vivem. Magalhães não sabe, não quer, não lhe convém distinguir as denúncias que as redes sociais vão fazendo da cleptocracia em que o país se encontra e os “lambe-botas” do patrão. Todos sabemos que a Internet é hodiernamente usada por países, empresas, grupos inorgânicos e indivíduos que espalham mentiras para interferir nos processos políticos democráticos ou condicionar a vontade e ação das populações, com objetivos económicos, políticos, ideológicos ou de mera desestabilização, a resposta tem de ser afirmativa: claro que há um problema!
Mas no económico do neoliberalismo Magalhães não fala. Magalhães não distingue o fundamental do acessório. Magalhães não percebe que o social é dissecado de forma escandalosa, enganadora e abusivamente embrutecedora do povo português através das chamadas revistas cor-de-rosa. Mas isso não interessa ao deputado falar. Interessa-lhe, sobremaneira, o obscurantismo do povo. Ao deputado não interessa que o povo português aumente a sua literacia informática, que saiba reconhecer o que é uma notícia falsa ou que procure conteúdos didáticos de qualidade que possibilitem uma aprendizagem ao longo da vida.
Bem sei que ao senhor deputado lhe pode criar algum calafrio quando as redes sociais publicam gastos que certos membros do Governo fazem com cartões de crédito e passem incólumes a tais denúncias e nem sequer devolvam o dinheiro desviado. Incomoda, pois então. Como incomoda que certos comediantes políticos enganem os portugueses com coberturas de falências com dinheiro dos contribuintes ou com compromissos eleitorais nunca cumpridos. Bem conhecemos a resposta para estas falsidades, «o povo os julgará nas urnas», Patético! Lembro-me sempre da frase de Orson Scott Card: «Se os porcos pudessem votar, o homem com o balde de comida seria sempre eleito, não importa quantos porcos já tivesse morto no recinto ao lado». Descriminar a comunicação escrita e televisiva da veiculada pela Internet é acima de tudo inconstitucional. Há nesta “cartilha” o favorecimento de uns em prejuízo de outros. Calar alguém só porque tem uma opinião diferente da comummente aceite é uma forma de censura.
Mas quem distingue o que é verdade do que é falso? Para Salazar, o artigo 4º dizia: «A censura será exercida por comissões nomeadas pelo Governo podendo ser remuneradas as respectivas funções». Para Magalhães, o “santo ofício” caberá à ERS, que é nomeada pelo Governo. Diferenças? Mas Magalhães foi mais longe. Em vez de se limitar a regular a divulgação de informação falsa, como era recomendado no “Plano Europeu de Ação contra a Desinformação”, Magalhães utiliza o conceito mais abrangente de narrativa, que inclui igualmente a manifestação de opiniões. Não chega saber se uma informação é verdadeira ou falsa, mas também que opinião é certa ou errada. Os donos da verdade absoluta, os inteligentes decidirão.
Para que a mentira tenha uma ponta de verdade apresenta-se o conceito de tarifa social da Internet. Mas que tarifa social? Onde estão os equipamentos que possibilitem aos cidadãos o acesso, mesmo com a tarifa social, à Internet. Quem não se lembra dos famosos computadores para todos os alunos, com ensino à distância, que nunca chegaram? Magalhães saberá que há zonas do país onde a cobertura da Internet não existe ou é deficitária? Mas disso não se fala. A lei foi aprovada em plenário da Assembleia da República sem nenhum voto contra. Nada que espante! Já espanta é que aprovada em abril, sem qualquer discussão pública, só agora, e precisamente por causa das redes sociais, se questione tal articulado amanhado ao gosto e prazer de interesses vários.
Já quanto ao facto do Presidente da República ter promulgado a lei nada de espantar, tudo conforme. Por fim, dizer aos «inteligentes submissos e donos do saber» que não pertenço aos que apoiam quaisquer medidas contra os direitos das minorias. Mas sou a favor da liberdade de pensar, de expressar opiniões mesmo que contrárias ao politicamente correto e à opinião da maioria. Sou frontalmente contra esta oligarquia sustentada numa execrável e podre cleptocracia. Como dizia Oscar Wilde: «Posso não concordar contigo, mas defenderei até à morte o direito de fazeres figura de idiota».
Uma cartilha à maneira
«Para que a mentira tenha uma ponta de verdade apresenta-se o conceito de tarifa social da Internet»